Erykah Badu: a xamã urbana que cura almas com neo-soul

Num mundo onde a música soul se reinventa a cada batida, Erykah Badu surge como a eterna guardiã de uma herança que mistura espiritualidade, autenticidade e groove. Aos 54 anos, a “rainha do neo-soul” continua a hipnotizar gerações, equilibrando palcos lotados, maternidade consciente e uma rebeldia criativa que inspira mulheres em todo o mundo

Das Ruas de Dallas ao Estrelato

Erica Abi Wright, nascida a 26 de fevereiro de 1971 em Dallas, no Texas, cresceu num ambiente impregnado de jazz, soul e blues, graças à influência da mãe, uma atriz de teatro local, e do pai, um baterista de jazz. Desde cedo, Erikah Badu – pseudónimo inspirado no nome da sua avó, “Erykah”, e na palavra árabe “Al-Badawi”, que significa “lugar de luz” – revelou um talento natural para a música. Frequentou a Booker T. Washington High School for the Performing and Visual Arts, onde se formou em teatro e dança, e mais tarde estudou na Grambling State University, no Louisiana, antes de regressar a Dallas para lecionar arte dramática a crianças.

Foi ali, no final dos anos 80, que começou a performar em open mics sob o nome de DJ Apples, misturando spoken word com ritmos hip-hop e soul. O seu ponto de viragem veio em 1993, quando gravou uma demo que chamou a atenção de D’Angelo e Questlove dos The Roots, levando-a a assinar com a Universal Records.

O álbum de estreia, Baduizm, lançado em 1997, foi um furacão: vendeu mais de três milhões de cópias mundialmente e estabeleceu o neo-soul como movimento cultural com faixas como “On & On” e “Next Lifetime”, que exploram temas como o amor, identidade e misticismo. O álbum não era só música; era uma declaração de independência, com aquela voz que sussurra verdades profundas e nos faz sentir que estamos a ouvir uma conversa íntima. Badu não era só uma cantora; era uma narradora de almas, vestida com turbantes e dreadlocks, desafiando padrões de beleza eurocêntricos e inspirando o movimento de natural hair nas mulheres negras.

Conquistas que Ecoam Além dos Palcos

A trajetória de Erykah Badu vai muito além dos palcos e dos estúdios – é uma viagem cheia de curvas inesperadas, momentos de pura magia e uma energia que parece não envelhecer nunca. Depois de Baduizm – que lhe rendeu dois Grammys (Melhor Álbum R&B e Melhor Performance Vocal Feminina por “On & On”) – veio Mama’s Gun em 2000, um disco mais cru e pessoal, onde ela despeja o coração em faixas como “Bag Lady” (aquele conselho sábio sobre não carregar bagagens emocionais que toda a gente canta até hoje) e “Didn’t Cha Know”, com beats suaves que parecem flutuar. O disco foi platina, trouxe mais elogios e mostrou que Badu não estava para brincadeiras: misturava jazz, funk e confissões pessoais como ninguém.

Seguiu-se Worldwide Underground em 2003, gravado quase como uma jam session ao vivo, que lhe valeu outro Grammy, e a ousada dupla New Amerykah (2008 e 2010), onde ela mergulha em temas políticos, amor e empoderamento, sampleando J Dilla e criando universos sonoros experimentais que deixam quem ouve a pensar dias a fio. No total, já são cinco Grammys na prateleira (o mais recente em 2025, por “3:AM” com Rapsody), sem contar as nomeações aos BET Awards e o lugar na lista da Rolling Stone como uma das maiores cantoras de sempre. 

Fora da música, brilhou como atriz em The Cider House Rules (1999), onde contracenou com Tobey Maguire e ganhou elogios pela sua vulnerabilidade; em Blues Brothers 2000 (1998), ao lado de Dan Aykroyd; e em What Men Want (2019), com Taraji P. Henson. É aquela atriz que aparece e rouba a cena sem esforço, trazendo a mesma autenticidade dos palcos.

Como ativista, ela cria ondas de forma orgânica: fundou o Badu World Market em Dallas, um mercado vibrante (agora também online) que dá palco a artistas locais, artesanato e produtos com alma. Tem sido uma voz forte em movimentos como Black Lives Matter, transformando concertos em momentos de meditação coletiva que deixam as audiências mais leves, mais conectadas – como se ela fosse uma curandeira moderna de microfone na mão.

E no meio de tudo isto, Badu é mãe de três filhos – Seven (com André 3000), Puma (com The D.O.C.) e Mars (com Jay Electronica) – que ela cria numa espécie de tribo familiar unida, descrevendo a família como “a minha maior colaboração criativa”. Em julho deste ano, no Essence Fest, confessou: “Ser mãe é a minha maior lição de paciência e groove”.

O parto como território de cura e resistência

A espiritualidade de Erykah Badu não se limita às letras nem aos palcos. Ela manifesta-se de forma concreta, íntima e radical no lugar mais ancestral de todos: o nascimento. Longe dos holofotes, Badu é também doula, uma guardiã do parto, alguém que acompanha mulheres num dos momentos mais transformadores da vida.

O caminho começou no início dos anos 2000, quando ajudou uma amiga num parto em casa. A experiência foi tão profunda que a levou a formar-se como doula e a dedicar-se seriamente a esse ofício. Desde então, assistiu ao nascimento de dezenas de bebés, oferecendo apoio físico, emocional e espiritual durante a gravidez, o trabalho de parto e o pós-parto. Entre as mulheres que confiaram nela estão artistas como Teyana Taylor e Summer Walker, que a apelidaram carinhosamente de “Badoula”.

Para Badu, ser doula é uma extensão natural da sua visão do mundo. Assim como a sua música procura libertar, curar e reconectar, o seu trabalho nos partos devolve às mulheres o poder sobre os seus corpos, num sistema historicamente marcado por medicalização excessiva e pela marginalização das mulheres negras. Não é coincidência que ela também tenha estudado para se tornar parteira e incentive a transmissão desse conhecimento — chegou mesmo a formar a própria filha nesse caminho, tratando o cuidado como herança cultural.

Se a música é a sua forma de curar almas, a doulagem é a sua maneira de honrar o corpo feminino como templo, portal e início de todas as histórias.

Reprodução: Wikipedia

Autenticidade como Arma de Revolução

O que separa Erykah Badu do pelotão de estrelas mainstream é o que nela resiste a ser categorizado. Enquanto muitas artistas perseguem fórmulas radiofónicas, Badu constrói universos: a sua música é um caldeirão de jazz de Coltrane, hip-hop consciente de Common e espiritualidade africana, tudo embrulhado numa voz que sussurra profecias. Exemplos concretos abundam – em “Window Seat” (2010), despiu-se numa rua de Dallas para protestar contra a vergonha corporal, gerando debate sobre liberdade de expressão e multas que ela pagou com orgulho. Ou em New Amerykah Part One, onde critica o capitalismo com “The Healer”, sampleada de uma pregação de igreja.

A sua estética – turbantes coloridos, roupas fluidas e uma aura de guia espiritual – influenciou ícones como Solange, SZA e Janelle Monáe, que a citam como mentora. “Eu sou uma curandeira através da música”, disse Badu numa entrevista à NPR em novembro de 2024, onde enfatizou que a arte é “o subtexto da minha vida”.

Badu destaca-se pela vulnerabilidade: em Mama’s Gun, expõe traições amorosas em “Certainly” com letras cruas como “Eu vi-o com outra mulher / E ela era linda”. É esta honestidade que a torna eterna – não uma diva intocável, mas uma irmã que nos convida a dançar com as nossas sombras.

Turnês, Um Novo Álbum e Sonhos Cósmicos

Em 2025, Badu está no auge da sua energia criativa, passando oito meses por ano em tournê, como confidenciou ao New York Times em outubro. O ano começou com a distinção de Ícone no Billboard Women in Music, onde falou da espiritualidade por trás de Baduizm e do novo álbum em gestação – ao fim de 15 anos sem um disco de estúdio completo, prepara-se para lançar um álbum inteiramente produzido por The Alchemist, conhecido por beats introspectivos com Madlib e Freddie Gibbs. “É sobre raízes e evolução”, disse ela, descrevendo sessões que misturam samples de soul antigo com eletrónica futurista.

Em novembro, surpreendeu com um concerto improvisado nas instalações do New York Times, onde performou clássicos como “Tyrone” e interagiu com jornalistas, descrevendo o momento como “bênção coletiva”. Mas o ponto alto da temporada foi a tournê de 25 anos de Mama’s Gun, que encerra em dezembro no Toyota Music Factory, em Dallas, com um espetáculo original que promete meditações e jam sessions. Badu descreve a tour como “uma carta de amor ao meu eu de 29 anos”, revivendo faixas como “Green Eyes” com arranjos frescos. 

Planos para 2026 incluem mais turnês globais, possivelmente com paragem em Portugal. Aos fãs, deixa um mantra: “A música é um desporto; estou pronta para o jogo”. Com Badu, o futuro não é previsão, mas convite para dançar no desconhecido, provando que, aos 54, ela ainda é a chama que ilumina o neo-soul.

Erykah Badu não é só uma artista; é um movimento vivo, uma ponte entre o ontem doloroso e o amanhã luminoso. Ela encarna plenamente a ideia de xamã urbana: alguém que transita entre o divino e o terreno, entre o som e o silêncio, entre o palco e o quarto de parto. É esta mistura irresistível de talento, coragem, espiritualidade e coração que a torna tão especial – e que nos deixa ansiosas pelo próximo capítulo.

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