Cientista de formação, pensadora crítica e defensora incansável de agricultura sustentável, Vandana Shiva transformou a proteção das sementes e daquilo que comemos numa causa global. Do vale do Himalaia ao palco das Nações Unidas, dedicou a vida à biodiversidade, justiça ambiental e soberania alimentar

Das Florestas do Himalaia à Filosofia da Ciência
Vandana Shiva nasceu a 5 de Novembro de 1952 em Dehradun, nas encostas do Himalaia, no norte da Índia, rodeada por árvores, rios e campos — a natureza foi a sua primeira escola. Filha de um conservador florestal e de uma mãe ligada à agricultura, a sua infância foi marcada por um contacto íntimo com o mundo natural que mais tarde definiria a sua vida.
Um episódio da juventude teve um impacto profundo: enquanto completava a formação em física na Universidade de Panjab, nos anos 1970, descobriu que uma das suas florestas favoritas tinha sido devastada. O ribeiro tinha-se tornado um fio de água e as árvores tinham desaparecido. Foi como se a natureza lhe tivesse enviado um alerta: se quisesse protegê-la, teria de agir. Decidiu então envolver-se com o movimento Chipko, um grupo de mulheres que defendia as florestas nos Himalaias através de métodos não‑violentos, literalmente abraçando árvores para impedir que fossem cortadas.
Shiva prosseguiu os estudos com um doutoramento em Filosofia da Ciência na Universidade de Western Ontario, no Canadá, cuja tese recebeu o título de Hidden Variables and Non‑locality in Quantum Theory — um tema altamente técnico e abstrato. Mas o seu verdadeiro universo era o mundo vivo que a rodeava.
Contra a Biopirataria Moderna: Preservação de Sementes e Resistência Rural
Nos anos 80, Vandana voltou à Índia com um objetivo claro: ligar ciência e agricultura, ciência e vida. Fundou a Research Foundation for Science, Technology and Ecology (RFSTE) e, em 1991, nasceu Navdanya — que em hindi significa “nove sementes” ou “novo presente”. Um projeto que começou pequeno, mas que hoje protege milhares de sementes tradicionais em mais de 150 centros comunitários espalhados por 22 estados da Índia.
Navdanya não é apenas um banco de sementes; é um movimento de resistência. Vandana Shiva defende que as sementes são património comum da humanidade, não uma mercadoria sujeita a monopólios corporativos. Ela argumenta que a apropriação de sementes por empresas através de patentes ameaça a soberania alimentar, reduz a biodiversidade agrícola e torna os agricultores dependentes de pacotes industriais de sementes e agroquímicos. Para Shiva, a diversidade das sementes tradicionais é essencial não só para a resiliência ecológica, mas também para a autonomia das comunidades rurais, especialmente em países em desenvolvimento.
A ativista vai ainda mais longe: critica organismos geneticamente modificados (GMOs) e acordos de comércio que permitem às multinacionais monopolizar sementes e recursos biológicos. Para ela, trata-se de biopirataria moderna. Através do movimento Navdanya, Shiva incentiva os agricultores a preservar e trocar sementes adaptadas localmente, promovendo práticas agrícolas sustentáveis e resistindo às monoculturas. Ela defende que os agricultores devem manter o controlo sobre as suas sementes, cultivando variedades adaptadas ao ambiente local e transmitindo conhecimentos tradicionais de geração em geração. Assim, as sementes deixam de ser um produto industrial e passam a ser símbolo de cultura, vida comunitária e sobretudo resistência contra a repressão das grandes corporações.
Este trabalho local rapidamente ganhou projeção internacional. Vandana Shiva passou a ser convidada para intervir em fóruns das Nações Unidas, incluindo conferências da FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations), da ONU Mulheres e debates sobre biodiversidade e direitos dos agricultores, onde levou a voz das comunidades rurais indianas para o centro das discussões globais sobre alimentação, comércio e clima.
Ecofeminismo e Confronto com o Sistema
Para Vandana Shiva, os problemas ambientais não se resolvem só com tecnologia. A raiz da questão é muito mais profunda: está na economia global e nas desigualdades sociais. É aí que entra seu lado ecofeminista. Ela mostra que explorar a Terra e marginalizar as mulheres andam sempre de mãos dadas.
No seu livro Staying Alive (1988), Shiva acendeu um alerta mundial sobre a importância das mulheres na agricultura sustentável. Ela conta que, especialmente nos países em desenvolvimento, as mulheres não estão apenas a plantar e a colher: estão a manter viva a biodiversidade, garantindo alimentos para as suas comunidades e preservando sistemas agrícolas resilientes. Muitas vezes, este conhecimento vital é ignorado ou desvalorizado por políticas agrícolas oficiais e corporações globais.
Por outras palavras, excluir as mulheres da agricultura não é só uma injustiça social — é também um risco para a sustentabilidade do planeta e para a segurança alimentar global. Ao valorizar o saber tradicional feminino e incluí-las nas decisões sobre produção e gestão de recursos, Shiva propõe uma agricultura que respeita tanto a natureza quanto as comunidades que dela dependem. Ou seja, cuidar da Terra e valorizar as mulheres andam juntas — e isso não é só bonito, é essencial para o futuro.

Prémios, Polémicas e Legado
Além de Navdanya, Vandana Shiva fundou a Bija Vidyapeeth (Earth University), uma escola e fazenda sustentável onde pessoas do mundo inteiro vão aprender práticas de agricultura ecológica, biodiversidade e vida sustentável. O seu ativismo já lhe valeu vários prémios, como o Right Livelihood Award (considerado o “Prémio Nobel Alternativo”) e o Sydney Peace Prize.
Mas nem tudo é aplauso: algumas das suas posições mais radicais sobre biotecnologia e agricultura industrial geraram polémica e debates acalorados. Ela chegou a sugerir que centenas de milhares de suicídios de agricultores na Índia estavam ligados aos pacotes de sementes patenteadas por grandes empresas, uma ligação que muitos especialistas consideram exagerada ou não comprovada pelos dados disponíveis. Outro foco de críticas diz respeito à sua abordagem aos GMOs e às soluções tecnológicas para segurança alimentar: alguns cientistas e académicos acusam‑na de “anti‑ciência” ou de adoptar um discurso que ignora potenciais benefícios de certas biotecnologias em contextos de fome ou de alterações climáticas, defendendo que uma rejeição completa das tecnologias modernas pode prejudicar esforços legítimos de aumentar rendimentos e resiliência. Também houve polémica pública em torno de declarações bastante polarizadas feitas nas redes sociais — como comparações entre advogar pelos GMOs e violência sexual — que foram consideradas ofensivas e pouco ajustadas pela comunidade científica e por críticos do seu ativismo.
O que permanece inegável é o seu legado: ver a agricultura como um sistema vivo, diverso e interligado com cultura, justiça social e biodiversidade. Um legado que começou nas florestas do Himalaia e continua a inspirar milhões de pessoas pelo mundo. Vandana Shiva prova que ciência, ética e ativismo podem caminhar juntos — e que uma única voz, quando comprometida, pode desafiar gigantes e inspirar gerações a cuidar do planeta.