

Nos últimos anos, Portugal posicionou-se como capital europeia do turismo psicadélico, com mais de 125 retiros listados em 2025. Mas o fenómeno levanta uma questão urgente: tradições indígenas, nascidas em malocas humildes, são agora comercializadas como experiências premium, enquanto as comunidades originárias recebem menos de 5% dos lucros globais. O mercado do wellness psicadélico cresce a um ritmo vertiginoso – de 3 mil milhões de dólares (≈ 2,6 mil milhões de euros) em 2024 para uma projeção de 8,3 mil milhões (≈ 7,2 mil milhões de euros) em 2027, segundo um relatório da Data Bridge Market Research – mas quem lucra verdadeiramente com o “chá da alma”?
O Boom do “Wellness Psicadélico”: O Mercado que Transforma Plantas em Produto
Em Portugal, o fenómeno é palpável. Desde a descriminalização de drogas para uso pessoal em 2001, o país tornou-se um hub europeu para estes rituais. Plataformas como BookRetreats listam mais de 125 opções em 2025, concentradas no Algarve e Alentejo, com um aumento de 50% desde 2023. Mas o que parece ser uma revolução inclusiva esconde desigualdades: enquanto uma cerimónia tradicional na Amazónia custa cerca de 280 euros por semana (dados de 2024 do ICEERS, International Center for Ethnobotanical Education, Research & Service), em Portugal os valores podem chegar aos 6700 euros – o equivalente a oito salários mínimos. Quem lucra? Frequentemente, facilitadores ocidentais ou “xamãs certificados”, enquanto povos indígenas recebem 0 a 5% dos proveitos globais, segundo o ICEERS.


Raízes Sagradas, Folhas Capitalistas: A Apropriação em Marcha
A ayahuasca, ou “vinha da alma”, é uma infusão de plantas amazónicas usada há séculos por povos indígenas (como os shipibo-conibo) para cura coletiva e conexão com a terra. Mas o turismo espiritual tem transformado este ritual num produto global: em 2019, mais de 820 mil novos utilizadores experimentaram ayahuasca fora da Amazónia, segundo o ICEERS, fomentando um “colonialismo espiritual” que extrai saberes sem retribuir. “Nós bebemos para nos ligarmos à terra; eles bebem para curar o burnout”, dizem os shipibo-conibo.
O alerta é real. Relatórios do ICEERS advertem contra a “diluição cultural”: rituais milenares, com icaros (cantos sagrados) entoados em malocas sob as estrelas, viram “workshops premium” com playlists de Spotify e suítes privadas. Na Amazónia, o boom turístico acelera o desmatamento para cultivo de Banisteriopsis caapi (uma planta central na preparação da ayahuasca), ameaçando a biodiversidade. E em Portugal? Um artigo do jornal Público de novembro de 2023 denuncia o crescimento sem regulação: sem dados sobre organizadores ou segurança, retiros proliferam em villas isoladas, misturando tradição com marketing Instagramável. Um verdadeiro assalto ao sagrado, com símbolos ancestrais a serem esvaziados e plastificados como lifestyle de elite.


O Caso Behold Retreats: Luxo Descriminalizado, Mas a Que Preço?
Entre os players, a Behold Retreats destaca-se como exemplo paradigmático. Co-fundada por Tanya Rozenthal, uma terapeuta holística de origem holandesa com mais de 15 anos de experiência em trauma ancestral e práticas xamânicas, a empresa oferece retiros de ayahuasca no Alentejo por 7800 dólares (≈ 6700 euros) por pessoa – um pacote de sete dias com três cerimónias, yoga, breathwork e piscina infinita, para grupos de 7 a 11 participantes. Versões privadas sobem para 25 mil dólares. Em entrevista exclusiva à Girls on Board, Rozenthal justificou a escolha de Portugal pela “ligação histórica com o Brasil e a Amazónia”, onde healers brasileiros mantêm a “linhagem viva”. “É o único país europeu onde a Ayahuasca foi descriminalizada, permitindo-nos facilitar o nosso trabalho sagrado num ambiente seguro e legalmente protegido. Portugal, por si só, tem uma vibração em perfeita sintonia com este tipo de trabalho: pessoas abertas, paisagens e comunidades que valorizam a profundidade e a integridade. Embora a maioria dos nossos retiros decorra na Costa Rica, adoramos ter uma localização mais próxima para aqueles que procuram cura e expansão vindos da Europa, da Ásia ou do Médio Oriente.”
Mas o modelo levanta questões. Rozenthal descreve cerimónias “autênticas, guiadas por quem trilha este caminho diariamente”, mas o preço exclui a maioria, transformando o sagrado num detox premium para elites. Um retiro Behold pode ser “uma das experiências mais significativas da vida”, como descreve a holandesa, mas para quem? Quanto dos lucros chega às comunidades amazónicas?
“O apoio indígena é algo em que participamos ativamente através da nossa fundação, Sovereignty Alliance, onde apoiamos projetos liderados por indígenas que protegem o conhecimento ancestral, restauram terras sagradas e promovem a regeneração ecológica”, garante Rozenthal. “As iniciativas da fundação abrangem programas de intercâmbio cultural, reflorestação de plantas medicinais e educação sobre soberania, todas desenhadas para retribuir diretamente às comunidades que sustentam este trabalho. O nosso compromisso é assegurar que este caminho de cura eleva não apenas os participantes dos retiros, mas também os guardiões originais desta sabedoria sagrada.”
No entanto, o impacto real e a autonomia das comunidades amazónicas permanecem difíceis de avaliar. Mesmo com cerimónias guiadas por facilitadores experientes, o risco de commodificação espiritual persiste, levantando questões éticas sérias sobre elitização, apropriação cultural e a real retribuição aos povos originários. Economicamente, o desequilíbrio é gritante: com base num relatório de 2023 do CEPLAN (Centro Nacional de Planeamiento Estratégico do Peru), que situa o rendimento mensal médio da região de Ucayali (onde vivem muitos Shipibo‑Konibo) em 819 soles peruanos (≈ 197 euros), membros das comunidades locais teriam de trabalhar 34 meses para conseguir aceder a um retiro no Alentejo..


Rumo a um Sagrado partilhado: Passos Éticos
A comercialização não cura; reforça o que adoece. Como alerta o relatório ICEERS, retiros de luxo oferecem “conforto a pedido”, removendo o incómodo essencial ao ritual – o confronto com a dor coletiva, não só individual. A espiritualidade real exige ética, não estética. Portugal, com a sua “vibração aberta”, pode liderar. Mas só se o luxo ceder à terra: retiros que honrem, não apropriem.
Para garantires que não és parte do problema, age já: antes de pagar qualquer retiro, envia um e-mail exigindo o “Passaporte Ético” com três perguntas claras: quem é o xamã (qual a linhagem e comunidade), que percentagem do valor total é enviada diretamente à comunidade indígena (com comprovativo), e se as plantas são cultivadas de forma sustentável ou extraídas da floresta. Antes de pagares 3000 euros, verifica se é real. Faz, tu mesma, doações diretas a organizações locais e boicota retiros que usam “xamãs” sem linhagem, seguindo as recomendações do ICEERS. Partilha as práticas aprendidas com a tua própria comunidade, criando uma corrente de saber gratuito. Porque o sagrado não se compra, oferece-se.
E a Mãe Ayahuasca? Ela agradece.