O amor: entre o desejo de durar e o medo de se perder

Por Dani Branco

Nos últimos anos, tenho escutado cada vez mais mulheres a dizer o mesmo tipo de frase: “eu me entrego, mas ele some”, “parece que ninguém quer se envolver de verdade”, “tenho medo de gostar e virar refém”. Estas falas não são sobre azar no amor. São sobre o tempo em que vivemos. Um tempo em que tudo precisa ser leve, rápido, reversível. Até o amor.

Zygmunt Bauman chamou este fenómeno de modernidade líquida. Um tempo em que os vínculos escorrem pelos dedos e o amor virou produto de consumo.  Desejamos um amor que acolha, mas também que não prenda. E nessa busca por conexões seguras e leves, vivemos uma contradição constante, uma espécie de fadiga emocional disfarçada de desapego. Aprendemos a desejar como quem compra: guiados por impulsos, comparando versões, prontos para trocar quando a relação começa a exigir manutenção. As relações passaram a seguir essa lógica de shopping. Procuramos parceiros como quem procura algo sob medida, avaliando custo, benefício e prazo de validade. Só que o amor não é um item de catálogo. Ele exige presença, entrega e imperfeição. O amor é da ordem do imprevisto, da entrega, da vulnerabilidade. Amar implica, sim, correr riscos. Só que vivemos num mundo que tem pavor do que não pode ser gerido, e isso inclui o outro. E é justamente por isso que nos assusta tanto.

Zygmunt Bauman @Pinterest

Bauman dizia que o maior medo contemporâneo é o da coagulação, ou seja, o medo de que algo se torne fixo demais. A vida líquida ensinou-nos a preferir relações de bolso: pequenas, práticas, que cabem no tempo entre um compromisso e outro.

Queremos vínculos instantâneos, mas sem sujeira emocional. E é assim que, tentando evitar o sofrimento, acabamos condenados à solidão. Quando trazemos esta questão para a clínica da psicanálise focada em questões da subjetividade feminina, a história ganha outras camadas.

Simone de Beauvoir escreveu que “não se nasce mulher, torna-se mulher”. Ela quis dizer que o feminino não é algo natural, mas construído. Moldado pelas expectativas do outro, pelos papéis de género e pelos mitos sobre o amor e o cuidado. Durante séculos, ensinaram às mulheres que amar é o seu destino. Que o amor é o lugar onde ela se realiza, onde encontra sentido, onde é “inteira”. O problema é que, ao colocar o amor como centro da vida, muitas mulheres aprenderam a reconhecer-se apenas no reflexo do outro. Amar virou uma religião silenciosa: uma promessa de salvação. Entregar-se de corpo e alma, esperar, sustentar. A devoção afetiva tornou-se sinónimo de valor. E, quando o outro vai embora, o chão desaparece junto. Não é raro que, na terapia, uma mulher diga: “eu me perdi nele”. Ou “eu me perdi”. Porque foi ensinada que amar é desaparecer.

Hoje, vivemos o encontro entre dois extremos: de um lado, a cultura da leveza e do desapego; do outro, o ideal feminino do amor total. Uma mulher que entrega tudo a alguém que aprendeu a não se comprometer está fadada à dor. Ele (o homem) foi socializado para ir e vir. Ela, para esperar.

E quando o laço se rompe, ela sente que perde a própria identidade, porque a sua existência estava depositada naquele vínculo. A clínica mostra que este descompasso entre a leveza masculina e a profundidade feminina não é uma questão de “culpa” ou “falha pessoal”. É um reflexo de séculos de desigualdade simbólica. O homem foi educado para o mundo, para a ação, para o movimento. A mulher, para o amor, para o lar, para o cuidado. E agora, no século XXI, quando a mulher conquista autonomia e desejo, ainda precisa lidar com os resquícios dessa herança emocional: querer liberdade, mas também querer ser escolhida.

Beauvoir também questionou a ideia do “mistério feminino”. Para ela, o mistério não é algo que existe na mulher, mas algo que o olhar masculino projeta sobre ela. O homem sente-se fascinado pelo que não compreende e transforma essa opacidade em desejo. Enquanto a mulher é enigma, ele se mantém interessado; mas quando a decifra, ela deixa de ocupar o lugar do desconhecido e passa a ser vista como comum. O “mistério”, portanto, não é uma qualidade feminina, e sim um espelho do desejo masculino de conquistar, dominar e depois seguir adiante.

Simone de Beauvoir @Pinterest

Do ponto de vista psíquico, isso ecoa algo que vemos na teoria do apego: enquanto algumas pessoas fogem do vínculo por medo de perder a autonomia, outras fundem-se ao outro por medo de serem deixadas. É o embate entre o apego evitativo e o ansioso, entre quem teme a invasão e quem teme o abandono.

O amor maduro, no entanto, nasce da segurança emocional, da possibilidade de estar próximo sem se perder, e distante sem se desligar. A psicanálise não oferece manuais, mas convida à reflexão. Talvez o desafio não seja encontrar um amor que salve, mas um amor que não apague. Amar sem desaparecer. Desejar sem pedir permissão. Construir vínculos onde duas liberdades possam coexistir e se reconhecer. Amar não é suportar o insuportável, nem insistir onde o outro já foi embora. É reconhecer o limite entre o vínculo e o aprisionamento. O amor que amadurece não se sustenta na dependência, mas na escolha consciente de dois sujeitos que se encontram sem precisar perder-se. Talvez o feminino de hoje comece justamente aqui. Quando o amor deixa de ser obediência ao ideal da entrega e passa a ser construção mútua. Um espaço de liberdade compartilhada, onde o desejo só faz sentido se for recíproco.

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