Numa remota aldeia mexicana envolta em névoa e mistério, uma mulher mazateca ousou abrir as portas do sagrado para o mundo. María Sabina, curandeira e poeta, foi a primeira a revelar os rituais ancestrais a não-indígenas, sendo apontada como a pioneira feminina do xamanismo moderno. Curou não só corpos mas almas perdidas em busca do divino. Os seus cantos e gestos, carregados de poder e beleza, transcenderam fronteiras, transformando-se em hinos universais e revelando que a verdadeira cura está na harmonia entre o humano e o místico.

Origens Humildes na Sierra Mazateca
María Sabina Magdalena García nasceu a 22 de julho de 1894, em Huautla de Jiménez, uma aldeia isolada na Sierra Mazateca, no estado de Oaxaca, México. Cresceu num ambiente de profunda tradição indígena mazateca, onde a natureza e o espiritual se entrelaçavam como raízes de uma árvore centenária. Órfã de pai aos três anos, vítima de uma doença que a família atribuiu a uma maldição, foi criada pelos avós maternos em condições de extrema pobreza.
A família dedicava-se à criação de bichos-da-seda e à agricultura de subsistência, num ciclo de trabalho árduo que mal chegava para alimentar as bocas. Sem acesso a educação formal, María aprendeu os segredos da vida através das histórias orais e das práticas ancestrais dos seus ascendentes. O seu avô, bisavô e pai eram “chotá-a t chi-née” – homens sábios, xamãs que usavam plantas sagradas para se conectar com o divino. Esta herança moldou-a desde cedo, transformando-a numa guardiã involuntária de saberes milenares.
Aos 14 anos, casou-se com Serapio Martínez, um homem que se alistou na Revolução Mexicana, deixando-a sozinha com um filho recém-nascido. Anos depois, o casal teve mais dois filhos, mas a viuvez chegou em 1914, mergulhando-a numa solidão que só os rituais mazatecos podiam aliviar.

O Chamamento dos ‘Niños Santos’
O primeiro encontro de María com os cogumelos sagrados, conhecidos como “niños santos” ou “crianças santas”, ocorreu entre os 5 e os 7 anos de idade, por volta de 1900. Durante uma cerimónia para curar um tio doente, observou os adultos ingerirem os fungos Psilocybe cubensis Huautla, que induzem visões e purificação espiritual. Curiosa e guiada por um instinto ancestral, colheu alguns com a irmã numa colina próxima e experimentou o êxtase pela primeira vez: uma sensação de união cósmica, onde o mundo se revelava em cores e vozes divinas. Este momento marcou o início da sua jornada até se tornar curandeira.
Anos mais tarde, no seu segundo casamento – com Martial, um feiticeiro local – enfrentou abusos e manipulações: ele tentava controlá-la através de feitiços negros. Foi nos cogumelos que encontrou refúgio e força para resistir, prevendo até a morte do seu agressor, assassinado pelos próprios filhos em defesa da mãe. Outro exemplo concreto da sua clarividência veio com a profecia da morte de Erasto Pineda, líder político local e gestor proeminente, abatido a tiros em junho de 1962, o que solidificou a sua reputação na comunidade como uma ponte viva entre o humano e o sagrado.
As suas “veladas” (rituais noturnos de cura) duravam horas, com cantos em mazateco que invocavam entidades espirituais para diagnosticar e tratar males físicos e emocionais. Diferente de outras curandeiras, María enfatizava a purificação coletiva, onde todos os participantes ingeriam os cogumelos como sacramento, não como mero remédio.

Encontro com o Estrangeiro: Wasson e a Revelação Global
O destino de María mudou drasticamente em 1955, quando o micologista norte-americano Robert Gordon Wasson, fascinado por relatos de cogumelos mágicos no México, chegou a Huautla de Jiménez. Acompanhado pela esposa, negociou com relutância a participação numa velada privada. María, aos 60 anos, foi a primeira curandeira mazateca a abrir as portas dos seus rituais a não-indígenas. Nas noites de 29 e 30 de junho, à luz de velas e com o som de maracas, guiou Wasson numa jornada psicadélica, fornecendo cogumelos Psilocybe mexicana e autorizando gravações de conversas, transcrições fonéticas e até fotografias com luz estroboscópica – algo inédito na tradição oral mazateca. Wasson recolheu amostras dos fungos e enviou-as para um laboratório na Basileia, na Suíça, onde a psilocibina foi isolada em 1958, abrindo portas para a pesquisa científica moderna.
O artigo seminal Seeking the Magic Mushroom, publicado na revista Life em maio de 1957, com fotos icónicas de María em transe, catapultou-a para a fama global. De repente, a humilde xamã tornava-se símbolo da contracultura emergente. Em 1962, o livro Las Visiones de María Sabina, do escritor e investigador mazateco Álvaro Estrada, compilou os seus cantos, revelando uma poesia profunda: “Eu sou a mulher que chora / Porque eu sou a mulher triste por causa da morte / Eu sou a mulher do luto / Eu sou a mulher da sepultura / Eu sou a mulher da cruz / Eu sou a mulher que grita” – versos que ecoam dor, renascimento e conexão com os ancestrais.

A Fama e as Sombras da Exploração
A onda de visitantes que se seguiu trouxe bênçãos e maldições. Entre 1964 e 1970, mais de 70 estrangeiros acorreram anualmente a Huautla, incluindo rumores de celebridades como Bob Dylan, John Lennon, Mick Jagger e Keith Richards, atraídos pela promessa de iluminação psicadélica. Inicialmente, a estabilidade económica ajudou: María recebia oferendas por serviços que antes eram gratuitos ou trocados por bens. Mas a euforia deu lugar ao caos. Autoridades mexicanas, confundindo rituais com tráfico de drogas, revistaram a aldeia em 1960, destruindo casas e expulsando a comunidade. María foi acusada de exploração cultural, banida temporariamente pelos seus e viu a sua casa incendiada.
Num depoimento arrependido, confessou: “Muitas pessoas aproveitaram-se de mim. […] Chorei por isso e a insónia não me deixou dormir. Antes de Wasson, ninguém trouxe ‘as crianças’ simplesmente para encontrar Deus. Elas sempre eram trazidas para curar os doentes.” O que a distinguia das demais xamãs era esta vulnerabilidade exposta: enquanto outras guardavam segredos, María, por generosidade ou destino, partilhou-os, pagando o preço da incompreensão ocidental.
María Sabina foi tratada de cancro na Cidade do México em 1983, graças ao poeta Homero Aridjis, autor do livro Carne de Dios (1977), inspirado nela. Aridjis organizou e financiou o transporte e tratamento, prolongando-lhe a vida até 1985 – o suficiente para testemunhar o alcance do seu impacto cultural: os seus cantos influenciaram álbuns como Comala de Jorge Reyes e Tres Marias dos Deep Forest.

Poesia e Cantos Eternos
A essência de María transcendia os rituais; residia na sua voz poética, um fluxo de palavras mazatecas que pintavam o cosmos. Os seus cantos, ditados pelos “niños santos” em transe, eram hinos mediúnicos que misturavam mitologia indígena com temas universais de nascimento, morte e regeneração. Um exemplo concreto: durante uma velada gravada em 1970, entoou “Porque eu sei voar de todas as formas / Porque eu sou a águia da altura / Porque eu sou a águia que voa / Eu sou a mulher que dá à luz / Eu sou a mulher que é mãe dos deuses”, versos que evocam a fertilidade da terra e o voo espiritual.
Diferente de poetas formais, María compunha no improviso do êxtase, sem escrita, preservando uma tradição oral que o Ocidente romantizou mas mal compreendeu. Os seus textos, compilados em María Sabina: Selections (2003), revelam uma mulher que via o sagrado no quotidiano: nos rios que correm, nas montanhas que sussurram. Esta autenticidade poética destaca-a como pioneira feminina do xamanismo moderno, onde a voz da mulher indígena ecoa contra o silêncio imposto pela colonização.

Legado: Uma Sábia Além do Seu Tempo
María Sabina faleceu a 22 de novembro de 1985, vítima de embolia pulmonar, aos 91 anos, em pobreza relativa, sem um sistema formal para honrar os seus serviços. Deixou o neto Filogonio Mateo como sucessor, garantindo a continuidade dos rituais mazatecos. Hoje, em Huautla, a sua imagem adorna táxis e restaurantes, um misto de reverência e comercialização que ela tanto temeu.
O eco cultural do seu impacto é imenso: inspirou o grupo de rock Santa Sabina, a canção María Sabina dos El Tri (que a chama “símbolo de sabedoria e amor”) e composições de Luzmila Carpio. Na ciência, os cogumelos que revelou ao mundo abriram caminho para a pesquisa moderna de terapias psicadélicas contra a depressão e TSPT, como falamos neste outro post.
O que a distingue eternamente é a coragem de partilhar o invisível: numa era de materialismo, María recorda-nos que o sagrado reside na humildade, nos fungos da serra e nas vozes das mulheres esquecidas. O seu legado convida-nos a escutar, não a extrair – uma lição suave, mas profunda, para gerações que navegam oceanos internos em busca de cura.
Assiste ao relato de Gordon Wasson sobre a sua velada privada com Maria Sabina: