Psicadélicos no campo de batalha: Desfazendo o mito hippie da “paz e amor”

Num mundo onde os psicadélicos são celebrados como elixires de paz e autodescoberta, uma voz desafia o mito: e se estas substâncias, longe de curar o ódio, o amplificarem? Zoe Cormier, jornalista e autora canadiana de Sex, Drugs and Rock ‘n’ Roll, mergulha no lado sombrio da história, revelando como LSD, mescalina e cogumelos alucinogénicos foram usados como armas em laboratórios militares, de campos de concentração nazis a experimentações da CIA. Cormier alerta: estas drogas não transformam almas – elas amplificam o que já lá está. Dos povos nahuas que as usavam durante rituais de sacrifício humano aos vikings berserkers em fúria homicida, o legado é extenso. E nas guerras de hoje, de Gaza à Ucrânia, o padrão persiste.

O Mito da “Paz e Amor” Desmontado

A narrativa romântica dos psicadélicos como portadores de empatia global ignora séculos de uso violento. “Fico sempre cansada e aborrecida com as afirmações de que os psicadélicos te tornam mais empático, fomentam maior compaixão pelos outros ou poderiam levar à paz mundial. É um disparate”, afirma Cormier. “Os psicadélicos sempre tiveram a capacidade de ser tudo para todos. Eles são ‘amplificadores não específicos’, podem levar a tua personalidade em várias direções”, conclui, citando o famoso psiquiatra checo Stanislav Grof.

No México antigo, os povos nahuas (especialmente os astecas) consumiam teonanácatl (os cogumelos com psilocibina conhecidos como “carne dos deuses”) antes de rituais religiosos intensos que incluíam sacrifícios humanos. Ingeridos por sacerdotes e participantes, estes enteógenos induziam estados visionários de êxtase que eram interpretados como manifestações diretas das divindades, especialmente deuses da guerra e da regeneração como Tezcatlipoca e Xipe Tótec. Durante essas cerimónias, as visões serviam para legitimar o ato sacrificial, revelar mensagens divinas ou indicar quem deveria ser oferecido. Séculos depois, os vikings ingeriam Amanita muscaria (cogumelos alucinogénicos) para entrar em estados de fúria berserker, atacando sem distinção entre amigos e inimigos. Estes estados alterados de consciência aumentavam a força e a resistência, tornando-os praticamente imparáveis no campo de batalha, mas também imprevisíveis e perigosos para os próprios companheiros. Conclusão: os psicadélicos não fomentam compaixão inerente – eles exacerbam traços existentes, como agressividade ou euforia maníaca.

Cormier, com a sua licenciatura em Zoologia e infância passada na indústria musical – o pai, Gary Cormier, foi um influente promotor de música ao vivo na cidade de Toronto, no Canadá – critica o idealismo em torno dos psicadélicos como motores de harmonia. Crescida entre hippies que pregavam amor mas votavam de forma egoísta nos anos 80, ela vê ecos disso hoje: “Os boomers, nos anos 60, eram todos sobre ‘paz e amor’. Depois, nos anos 80, mudaram-se para os subúrbios e votaram em Reagan e Thatcher por impostos mais baixos. Só se importavam consigo mesmos.” Esta cínica clareza impulsionou a sua pesquisa: longe de poções salvíficas, os psicadélicos foram, historicamente, ferramentas de caos controlado.

@pinterest

Experiências Sombrias: Nazis, CIA e a Busca pelo “Soro da Verdade”

A era moderna eleva o horror. Na década de 1940, os nazis testaram mescalina (o alucinogénio do peyote) em prisioneiros no campo de concentração de Dachau, na Alemanha, procurando um “soro da verdade” para interrogatórios. Inspirados por um químico japonês que sintetizou metanfetaminas em 1917, distribuíram 35 milhões de doses de Pervitin (metanfetamina) aos soldados durante o Blitzkrieg, combatendo a fadiga que viam como “o maior inimigo”. Historiadores como Norman Ohler, em Blitzed, argumentam que esta “guerra farmacológica” acelerou vitórias iniciais, permitindo marchas de 90 km diários sem descanso.

No pós-guerra, os EUA absorveram estes segredos via Operação Paperclip, que recrutou cientistas alemães — muitos deles ex-nazis, como Richard Kuhn — para trabalhar em projetos militares e tecnológicos americanos. Kuhn colaborou com a CIA no MKUltra (1953-1973), programa secreto voltado para pesquisas sobre o controlo da mente e manipulação comportamental, doseando milhares de pessoas com LSD sem consentimento. Subprojetos como CHATTER (soro da verdade) e ARTICHOKE (controlo mental) visavam “destabilizar inimigos”. O caso mais arrepiante: reclusos negros em solitária receberam LSD por 75 dias consecutivos, “confirmando” que a substância induzia loucura. Cormier ironiza: “Que surpresa!”

Em 1953, a CIA encomendou 100 milhões de doses de LSD diretamente à Sandoz Chemicals, na Suíça – o suficiente para todos os americanos – mas o propósito permanece secreto. Em Acid Dreams, Martin A. Lee relata que prostitutas eram pagas para drogar clientes num “bordel sancionado” em São Francisco, observado por agentes da CIA num espelho unidirecional. Estes abusos éticos – em prisioneiros, minorias e voluntários iludidos – ecoam até hoje, sendo alvo de duras críticas por parte de Zoe Cormier: “Não consigo imaginar de que forma seria ético dar um psicadélico a qualquer pessoa em cenário de guerra — seja inimigo ou os teus próprios soldados — pois estas substâncias têm uma variedade enorme de efeitos. Não sabemos como podem impactar cada indivíduo. E imagina ter uma bad trip em plena zona de guerra…”

Guerras Atuais: Captagon em Gaza e “Sais de Banho” na Ucrânia

O legado persiste em conflitos vivos. No Médio Oriente, combatentes do Hamas foram encontrados com Captagon – fenetilina, um anfetaminado sintético apelidado de “cocaína do pobre”, produzido em massa na Síria (responsável por 80% da oferta mundial). Relatórios da BBC e USA Today confirmam que sacos de Captagon foram encontrados nos bolsos de atacantes mortos que participaram na ofensiva de 7 de outubro de 2023, reduzindo o medo e a fome para ataques prolongados. 

Relatos palestinianos acusam Israel de contrabando de drogas para Gaza via drones e ajuda humanitária, procurando criar uma “sociedade viciada” para recrutar informadores. Em julho de 2025, o site de notícias Al-Estiklal documentou opioides como oxicodona em sacos de farinha da Gaza Humanitarian Foundation, programa de assistência humanitária apoiado pelos EUA e por Israel, gerando pânico num enclave sitiado.

Na Ucrânia, desde a invasão russa em 2022, o Global Organized Crime Index (2023) nota um aumento de 4,5 pontos no mercado de sintéticos, com soldados russos a usarem cada vez mais anfetaminas e “sais de banho” (catinonas sintéticas como alpha-PVP). Estas substâncias combatem o tédio e a fadiga nas trincheiras, mas causam alucinações e paranoia – relatos de “zombis” avançando em Bakhmut sugerem sobredosagem. O álcool persiste como tradição arraigada na cultura militar russa, ecoando o “rácio do comissário” – uma dose diária de 100 ml de vodka introduzida na era soviética e dobrada para 200 ml em maio de 1942, durante a II Guerra Mundial, para ajudar as tropas da linha da frente a enfrentarem o frio e o medo. Relatórios recentes, como o do The Moscow Times (outubro de 2025), indicam que o consumo excessivo está a contribuir para um surto de alcoolismo e TSPT (Transtorno de Stress Pós-Traumático) entre os soldados, com pelo menos 255 mortes por abuso de substâncias (incluindo álcool) desde 2022.

O Futuro: Cura para Veteranos ou Capitalismo Psicadélico?

Promissor, mas arriscado. Ensaios da MAPS (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies), uma organização norte-americana sem fins lucrativos fundada em 1986, mostram que o MDMA levou à remissão de TSPT em 67% dos participantes, todos eles veteranos de guerra, com resultados duradouros. Investigações no Kentucky e no Texas, com mais de 50 milhões de dólares investidos, revelam que a ibogaína diminui o vício em opioides e favorece a recuperação de lesões cerebrais. Um estudo publicado no New England Journal of Medicine em 2022 indicou que a psilocibina apresenta eficácia comparável aos antidepressivos do tipo SSRI no tratamento da depressão e pode também favorecer a abstinência do álcool — cerca de 40% dos participantes mantiveram-se abstinentes um ano após o tratamento.

Mas Cormier avisa: “A recaída é boa para o negócio” na reabilitação. Startups como a Compass Pathways, avaliada em cerca de 420 milhões de dólares, patenteiam não só formulações químicas, mas elementos triviais da terapia, como “divãs em tons muted” ou “contacto físico reconfortante”, ao mesmo tempo que criam barreiras legais que bloqueiam genéricos acessíveis e perpetuam monopólios. Clínicas de ketamina nos EUA cobram 750 dólares por sessão, com efeitos fugazes que fomentam a dependência. Mais de 600 clínicas operam sem regulação rigorosa, com o FDA a emitir alertas em 2024 sobre formulações compostas não padronizadas que aumentam o riscos de abuso. Em 2025, o British Medical Journal reportou 3600 novos casos de vício no Reino Unido, com overdoses e danos graves. “Em cinco anos, chamaremos ao ketamina o próximo OxyContin”, prevê Zoe Cormier, referindo-se à crise de opioides orquestrada pela Purdue Pharma, farmacêutica norte-americana que tem sido recorrentemente multada por marketing enganoso.

@Zoe Cormier

O Verdadeiro Combate É Humano

Há quase 10 anos dedicada à investigação do “lado negro” dos psicadélicos, Zoe Cormier considera que nunca foi tão importante falar sobre este tema. “As pessoas que querem lucrar com este tipo de substâncias (empresas farmacêuticas e afins) não desejam nada mais do que varrer isto para debaixo do tapete e fingir que estas moléculas são totalmente inofensivas”, denuncia, insistindo na desmitificação dos psicadélicos como catalisadores de paz e empatia. “Quero que as pessoas deixem de ser idealistas com qualquer droga que pensem que vai mudar o mundo, porque a única coisa que vai mudar o mundo és tu.”

Nas trincheiras, nos laboratórios ou nas salas de terapia, a verdadeira batalha é interior. Porque a revolução não está na química – está na consciência.

NEWSLETTER

Inscreva-se na nossa newsletter e faça parte desse movimento que conecta ideias, histórias e transformações.

Receba conteúdos inspiradores, eventos, projetos e oportunidades diretamente no seu e-mail.

Artigos Relacionados

novembro 28, 2025

Da White Zone ao Vestuário: Quando a moda procura criar o seu refúgio pessoal

novembro 26, 2025

María Sabina: A Xamã que Fez o Ocidente Dançar com os Deuses dos Cogumelos

Mais conteúdos

Da White Zone ao Vestuário: Quando a moda procura criar o seu refúgio pessoal

María Sabina: A Xamã que Fez o Ocidente Dançar com os Deuses dos Cogumelos

Inverno sem desculpas: O guia para manter o ritmo dos teus exercícios

Joana Vasconcelos: Entre Bordados, Tampões e Esculturas Monumentais

Apropriação do Sagrado: Quando o Airbnb encontra a Mãe Ayahuasca

Da África à América Latina: A Biosfera em Foco na Era da COP30

Amores Sem Amarras: Como Marcela Aroeira Desafia o “E Depois Viveram Felizes Para Sempre”

Movimento Surfistas Negras: A onda de representatividade que nasceu com Érica Prado

Lunação em Escorpião

Faça parte da (r)evolução

Coming Soon