Neuroplasticidade, Trauma e Saúde Mental: O Poder de Recriar a Mente e Curar o Ser

Especialista explica como a neuroplasticidade pode ajudar na cura de traumas e na construção de uma mente mais saudável e resiliente

Para aprofundar o tema da neuroplasticidade, conversámos com a psicóloga Marcela Alves de Moraes, profissional com 10 anos de experiência, especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental, facilitadora de Mindfulness e que está, atualmente, em formação na área do trauma. Marcela explora, também, o autoconhecimento e a ligação entre ciência e espiritualidade no seu podcast Desnude e no seu livro “Lidando com Momentos de Crise”.

O cérebro que se reconstrói

Por muito tempo acreditou-se que o cérebro era estático — ou seja, que uma vez formado, as suas ligações não poderiam mudar. Hoje, sabemos o contrário: o cérebro é vivo, maleável e criativo.

“A neuroplasticidade é a capacidade que o cérebro tem de se reorganizar e criar novas conexões ao longo de toda a vida. Embora seja mais intensa durante a infância, ela não desaparece com o tempo — apenas muda de ritmo. Mesmo em fases mais maduras, aprender algo novo, cultivar hábitos diferentes e abrir-se a novas vivências ajuda o cérebro a reconstruir-se e a manter a mente flexível, criativa e viva”, explica a psicóloga Marcela Alves de Moraes.

Esta habilidade extraordinária permite-nos reaprender a confiar após uma perda, desenvolver novas habilidades ou reparar danos emocionais e cognitivos. Cada pensamento consciente, cada respiração profunda e cada ato de autocuidado podem literalmente redesenhar a arquitetura do cérebro, fortalecendo redes neurais ligadas à calma, à esperança e ao amor próprio.

Trauma: quando o corpo lembra

O trauma não é apenas um evento do passado — ele manifesta-se no corpo e na mente, deixando padrões de sobrevivência. O sistema nervoso cria, então, respostas automáticas de alerta, que podem manter a pessoa em estado constante de tensão.

“De acordo com o especialista Gabor Maté, trauma não é o que aconteceu, mas o que se passou dentro de nós em resposta ao que aconteceu. Ele vive em nós porque diz respeito à experiência interna que carregamos. Antigamente, só se falava de traumas grandes, agora entendemos que pequenas experiências de desamparo também deixam marcas”, complementa Marcela.

Mesmo quando sabemos cognitivamente que o evento passou, o corpo pode reagir como se o trauma fosse atual. Nesse sentido, o trabalho terapêutico envolve criar experiências de segurança e presença, ensinando o corpo a relaxar e o cérebro a abrir-se para novas aprendizagens.

Esse é, inclusive, um tema que fascina Marcela. No episódio 12 do seu podcast Desnude, a psicóloga o aborda com uma das grandes especialistas do Brasil – Carolina Perrella – trazendo insights de como compreender e lidar com essas marcas no corpo e na mente.

Foto: Pinterest

Reconstrução emocional após um trauma

Para superar essas marcas, a reconstrução emocional exige segurança, paciência e práticas consistentes de autocuidado.

“O que mais ajuda uma pessoa a reconstruir-se emocionalmente é ter acesso novamente ao amor e à sensação de segurança. Para isso, relações de apego seguro, prática de regulação do sistema nervoso e autocuidado diário são fundamentais. Pequenos gestos repetidos, como respiração, meditação ou intenções conscientes, reforçam a mensagem de que a mudança é possível”, explica.

A cura não é esquecer o que doeu, mas reaprender a viver com leveza e propósito, sabendo que cada experiência, mesmo a mais difícil, pode transformar-se em aprendizagem e crescimento, e o poder de mudar já está em cada um de nós — no corpo que sente, na mente que aprende e na consciência que desperta.

Para a profissional, é importante ressaltar que a cura é gradual e personalizada: respeitar o próprio ritmo, evitar comparações e valorizar cada nível de progresso são passos essenciais para a reconstrução emocional.

“Quando dizemos a nós mesmos ‘sei que o passado já passou’, muitas vezes o corpo continua a reagir como se o trauma fosse atual. Estratégias bottom-up, que vão do corpo para o cérebro — como respiração, movimento e mindfulness — são fundamentais para restaurar a regulação do sistema nervoso e promover a cura, além de práticas top-down – que vão da mente para o corpo – como psicoterapia verbal, escrita terapêutica e reestruturação cognitiva, permitindo que corpo e mente se reconectem de forma segura e consistente, promovendo uma cura profunda e duradoura.”

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Stress, ansiedade e bloqueios: como estimular a neuroplasticidade e promover uma cura emocional

O stress crónico pode dificultar a neuroplasticidade. Quando o sistema nervoso está em alerta constante, sobra pouca energia para aprender ou para criar novos caminhos mentais.

“O stress em doses pequenas pode ser adaptativo, mas, quando prolongado por muito tempo, o cérebro ‘aprende’ a viver em tensão. Práticas de regulação emocional, meditação, respiração consciente e movimento corporal ajudam o sistema nervoso a relaxar, permitindo que o cérebro se abra para a aprendizagem e para a mudança”, reforça Marcela Alves de Moraes.

A neuroplasticidade pode ser fortalecida, tanto por práticas quotidianas como através de terapias especializadas. Estas estratégias combinam hábitos simples com técnicas clínicas que ajudam corpo e mente a reconstruírem-se de forma segura. 

“Quando o corpo está muito desregulado, é importante começar com técnicas bottom-up, que vão do corpo para o cérebro. Elas ensinam ao sistema nervoso que agora ele está seguro, ajudando a reduzir respostas automáticas de defesa e criando uma base para novas aprendizagens”. Algumas abordagens podem ser: 

  • Exercícios físicos regulares: aumentam a produção de neurotrofinas e proteínas que fortalecem o cérebro, contribuindo para a aprendizagem e adaptação neural.
  • Aprendizagem contínua: aprender algo novo, como um idioma ou instrumento, cria novas conexões neurais e mantém a mente ativa e flexível.
  • Journaling e práticas de gratidão: reorganizam padrões de pensamento e promovem emoções positivas, fortalecendo redes neurais associadas a bem-estar emocional.
  • Meditação e mindfulness: cultivam atenção plena, reduzem a ansiedade e fortalecem conexões neurais ligadas à calma. Também ajudam a observar respostas internas sem sobrecarregar ou julgar, promovendo a tolerância a sensações desconfortáveis.
  • Contacto social e suporte emocional: relações saudáveis oferecem segurança, aumentam resiliência emocional e estimulam a neuroplasticidade.
  • Contacto com a natureza: experiências ao ar livre reduzem o stress, estimulam a atenção e promovem o bem-estar cognitivo.
  • Terapias criativas (arte, música, dança) permitem expressar emoções e criar novos caminhos neurais de forma lúdica e profunda.
  • EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing): técnica científica para processar memórias traumáticas, reduzindo sintomas pós-trauma e ativando o nervo vago ventral, responsável por gerar sensação de segurança e relaxamento no corpo.
  • Terapias somáticas (Somatic Experiencing): focam-se nas respostas corporais ao trauma e na regulação do sistema nervoso autónomo, ajudando a libertar tensões armazenadas e a restaurar estados de segurança fisiológica.
  • Práticas top-down (psicoterapia verbal, escrita terapêutica, self-talk, reestruturação cognitiva): trabalham com a narrativa, significado e compreensão consciente, fortalecendo autorregulação e flexibilidade mental.

“Na prática clínica, combinar abordagens corporais e cognitivas costuma ser muito mais eficaz do que depender de uma única técnica. Esta integração permite que corpo e mente se reconstruam de forma segura e consistente, promovendo cura profunda e duradoura”, acrescenta.

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Protegendo e nutrindo o cérebro na era digital

Quando questionada sobre como é que podemos proteger e nutrir o nosso cérebro numa era em que existe uma sobrecarga digital e multitarefa constantes, Marcela partilha estratégias práticas para preservar a saúde mental e cerebral.

“Essa pergunta é extremamente importante se quisermos cuidar da nossa saúde mental e cerebral. Eu, particularmente, aconselho os meus pacientes — e coloco em prática comigo mesma — a não mexerem no telefone nos primeiros 30 minutos do dia. Nesse período, as nossas ondas cerebrais ainda estão em alfa, acabámos de despertar e é muito importante controlar a informação que consumimos logo de manhã”, explica.

Pequenas práticas matinais, como tomar um copo de água, sentar e respirar por alguns minutos, ajudam a preservar a saúde cerebral e a começar o dia com maior presença. Da mesma forma, Marcela recomenda que à noite, uma hora antes de dormir, não se deve olhar mais para o ecrã, respeitando a higiene do sono e permitindo que o cérebro relaxe profundamente.

Já durante o dia, estratégias como algumas pausas conscientes e blocos de trabalho de 50 minutos seguidos de 10 minutos de descanso ajudam a evitar sobrecarga, mantendo foco e produtividade sem comprometer o equilíbrio mental. Aplicações que bloqueiam o uso de redes sociais em horários específicos também são úteis para criar períodos de descanso, ou um “jejum de dopamina”, durante os quais o cérebro pode desligar-se de estímulos constantes e recuperar energia.

“Para mim, funciona muito bem só abrir o WhatsApp depois das 8h da manhã e redes sociais depois das 9h; à noite e depois das 20h também não mexo no telemóvel. Encontrar períodos totalmente off, como fins de semana, é uma ótima forma de permitir que o cérebro descanse”, comenta.

Marcela destaca, ainda, que fazer uma coisa de cada vez, com atenção plena, é fundamental para a saúde cerebral e ajuda a criar as condições ideais para que a neuroplasticidade aconteça — permitindo que o cérebro se reconstrua, se adapte e se fortaleça perante o ritmo acelerado da vida moderna.

“O cérebro precisa deste cuidado constante. Pequenas mudanças no dia a dia já fazem uma grande diferença e ajudam a manter a mente e o corpo equilibrados, favorecendo a aprendizagem, a criatividade e o bem-estar emocional”, conclui.

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Ciência e espiritualidade: integrando mente, corpo e coração

A neuroplasticidade não é apenas um fenómeno biológico, mas sim uma capacidade que  se conecta profundamente com aspectos espirituais, como o perdão, a compaixão e o sentido de pertença. Para a psicóloga, práticas repetidas de compaixão, gratidão e perdão funcionam como exercícios para o cérebro, assim como para o coração, promovendo mudanças reais nos circuitos neurais e fortalecendo a regulação emocional.

“Na prática, atitudes internas como perdoar alguém, permitir-se sentir compaixão, agradecer pelas pequenas coisas ou fazer uma oração funcionam como exercícios para o cérebro e também para o coração. O toque afetivo, o cuidado consigo e com os outros, o sentimento de pertença e a conexão com pessoas ou algo maior fortalecem a regulação emocional, ajudam a diminuir a ansiedade e criam uma sensação de segurança interna. É nesse ponto que a ciência e a espiritualidade se encontram: quando repetimos essas práticas, vamos mudando os nossos circuitos internos, ajudamos o corpo e a mente a reorganizarem-se, e aumentamos a nossa capacidade de resiliência, equilíbrio emocional e conexão verdadeira, connosco e com os outros”, sublinha.

Segundo a psicóloga, pessoas que cultivam espiritualidade ou religiosidade tendem a avançar mais rapidamente nos processos terapêuticos. Elas desenvolvem uma maior resiliência em momentos de crise e acedem a estados de transcendência, promovendo integração entre mente, corpo e espírito.

Equilibrar ciência e espiritualidade no processo de cura é, para Marcela Alves de Moraes, um exercício de integração e não de escolha entre uma ou outra. A ciência fornece ferramentas para entender o funcionamento do cérebro e do corpo, para regular o sistema nervoso, para monitorizar o progresso e organizar cuidados de forma prática e segura. A espiritualidade, por sua vez, conecta-se com sentido, propósito e experiências afetivas profundas — seja através da meditação, oração, práticas de compaixão e perdão, ou do simples sentimento de pertencer a algo maior.

No dia a dia, integrar estas duas dimensões significa combinar o prático com o simbólico: “Aplicar estratégias que comprovadamente ajudam a regular o corpo e a mente e, ao mesmo tempo, cultivar práticas que dão significado, pertença e conexão. Permitir que a ciência apoie a espiritualidade, e que a espiritualidade fortaleça a ciência, é o caminho para uma cura profunda, completa e integrada, envolvendo corpo, mente e espírito.”

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A cura é um processo, não um destino: cultivando esperança e autocuidado

Reprogramar o cérebro não acontece de um dia para o outro. Assim como o corpo precisa de tempo para cicatrizar, a mente também precisa de paciência, consistência e gentileza.

A neuroplasticidade ensina-nos que cada escolha conta: escolher respirar antes de reagir, escolher acolher-se em vez de se julgar, escolher abrir-se para o novo. A cada pequeno gesto, o cérebro aprende que existe um outro caminho possível.

A cura emocional é um processo contínuo de reconexão: com o corpo, com a mente e com a vida. Não há ponto final — apenas camadas de consciência a abrirem-se, revelando a força silenciosa que existe em quem escolhe curar-se.

“Do fundo do meu coração, mesmo que sintam que não há mais volta, há sempre uma nova saída e uma possibilidade de mudança. Não importa o ritmo ou o tempo, a mudança é possível. A cura acontece nas pequenas coisas, na ciência dos micro-hábitos e dos pequenos passos. Quanto mais repetimos uma ação, mesmo que mínima, mais reforçamos o nosso cérebro e o nosso sistema nervoso, dizendo-lhe que é possível mudar. Pode ser algo simples, como acordar e não pegar no telefone imediatamente, fazer uma respiração leve, uma oração ou colocar uma intenção para o vosso dia. Estes pequenos gestos importam muito”, conclui Marcela.

Seguindo este princípio, a profissional acredita que cada passo fortalece a autoeficácia, a autoestima e a confiança na própria capacidade de transformação. “Comecem do básico e avancem aos poucos, respeitando o vosso ritmo. Se possível, procurem um psicólogo para vos guiar nesta jornada, oferecendo suporte seguro e personalizado. E lembrem-se: não se comparem com os outros. Valorizem o vosso próprio processo, acolham os vossos sentimentos e deem a vocês mesmos a gentileza e o tempo para se reconstruírem.”

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