Movimento Surfistas Negras: A onda de representatividade que nasceu com Érica Prado

  • Desporto
  • Movimento Surfistas Negras: A onda de representatividade que nasceu com Érica Prado

Quando pensamos em surfistas, ainda é comum que a imagem que surja seja a do estereótipo clássico: alguém de pele clara, cabelos loiros queimados pelo sol e um estilo de vida que combina liberdade e aventura. Mas esta imagem tão disseminada não representa a realidade de todas as pessoas que vivem o mar. Em 2019, uma jornalista e ex-surfista profissional decidiu mudar isto. O nome dela é Érica Prado, e o movimento que ela criou — Surfistas Negras — está a transformar não só o desporto, mas também a forma como falamos sobre representatividade, acesso e igualdade no surf brasileiro.

A trajetória que moldou uma pioneira

A história de Érica começa no Rio de Janeiro, mas é na Bahia, em Itacaré, que o mar a encontra de maneira definitiva. Criada entre ondas fortes e pranchas que circulavam naturalmente pela comunidade da região, ela começou a surfar aos 9 anos. O talento cresceu junto com ela e em 2002 começou a competir de forma amadora. Entre os anos de 2003 e 2006, Érica tornou-se bicampeã municipal, bicampeã ilhense e campeã baiana, colecionou títulos regionais e viveu intensamente o circuito competitivo. Mas fora de água, enfrentava um desafio maior do que qualquer onda tubular: a falta de patrocínio. Em entrevistas, ela conta sobre viagens longas, noites na rodoviária e a realidade financeira dura que muitas surfistas negras vivem ao tentar seguir a carreira profissional. Mesmo vencendo baterias, muitas vezes não havia quem acreditasse suficientemente no seu potencial para apoiar os seus passos.

O mar, no entanto, continuava a ser o seu lugar. Quando decidiu cursar Jornalismo, nesta época de volta à sua terra natal, Rio de Janeiro, Érica aproximou-se de outra forma de viver o surf: documentando-o, comentando-o, dando-lhe voz. Trabalhando em veículos como o canal Woohoo, ela passou a observar o desporto por um ângulo mais amplo — e percebeu algo incómodo: a quase total ausência de mulheres negras representadas, seja nas competições, nos anúncios das marcas de surfwear ou simplesmente nas narrativas contadas pelos media. Isto fez com que ela se perguntasse: Onde estão as mulheres negras nas ondas? Será que elas não existem, ou será que não estão a ser vistas?

Foi este incómodo que, anos mais tarde, se tornou movimento. Inspirada também por projetos internacionais que conheceu numa viagem à Califórnia em 2015, Érica decidiu criar um espaço dedicado a dar visibilidade e apoio a mulheres negras no surf. Assim nasceu o Movimento Surfistas Negras, inicialmente como uma página no Instagram (@surfistasnegras), mas rapidamente transformado em algo muito maior. A ideia era simples, mas poderosa: mostrar que mulheres negras surfam — e que fazem isso com força, técnica, talento e paixão. 

O primeiro encontro

O primeiro grande marco aconteceu em 2019, quando Érica organizou o Primeiro Encontro Nacional de Surfistas Negras e Nordestinas, reunindo cerca de 30 mulheres na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Foi um momento de celebração e reconhecimento. Mulheres de diferentes idades, backgrounds e trajetórias encontraram-se ali, algumas pela primeira vez vendo outras surfistas que se pareciam com elas. Era mais do que um evento; era um espelho a ser devolvido a quem nunca se viu refletida no desporto. Na época do evento, Érica enfatizou: “As mulheres negras, que estão sempre numa condição de subserviência, serão as protagonistas do evento. Queremos provar que o mar também é um lugar possível para elas. São as negras as que têm mais dificuldades de se ver representadas no desporto.”

A partir daí, a comunidade cresceu. A página tornou-s um espaço de acolhimento, troca e inspiração. Érica começou a articular apoio para surfistas negras, muitas vezes por meio de financiamento coletivo, doações de equipamentos ou parcerias com marcas que estavam — finalmente — a começar a perceber o potencial e a necessidade de uma mudança estrutural no surf. Ela tornou-se uma espécie de “agente extra-oficial” de atletas negras, ajudando-as a conquistar pranchas, roupas de neoprene e até visibilidade.

Desde o primeiro encontro em 2019 — e com uma edição online em 2020 devido à pandemia — o Movimento Surfistas Negras já passou por diversas cidades brasileiras como Rio de Janeiro, Itacaré e Maracaípe, reunindo mulheres de diferentes regiões e fortalecendo essa comunidade dentro e fora do mar. Ao longo dos anos, estes encontros consolidaram-se como espaços de troca e representatividade. E agora, esta semana, o movimento retorna a Maracaípe para mais uma edição que promete aprofundar ainda mais a conversa sobre pertencimento, liderança feminina e o futuro do surf para mulheres negras. Estas ações reforçam um ponto essencial da visão de Érica: o movimento não é só sobre o mar; é sobre comunidade, cura e pertencimento.

A força do coletivo

As histórias de atletas como Monik e Nicole Santos, que competem no Dream Tour — a elite do surfe brasileiro — também mostram o impacto do Surfistas Negras. Mesmo com talento e presença nas principais competições, ainda enfrentam falta de patrocínios e pouca visibilidade. O apoio do movimento ajuda a amplificar as suas vozes e a pressionar por mudanças nas políticas de marcas e federações. Ao contar as suas trajetórias, o Surfistas Negras dá rosto e narrativa a desafios que passam despercebidos para quem olha o surf de fora.

Mas o trabalho está longe de terminar. O movimento continua a enfrentar as dificuldades estruturais do surf: a estética eurocêntrica dominante, a invisibilidade nos media, o pouco apoio financeiro e o racismo institucional presente em várias camadas da indústria desportiva. Ainda assim, a força dessas mulheres — e do coletivo — mostra-se em cada encontro, cada aula, cada foto compartilhada e cada nova surfista negra que entra no mar pela primeira vez acreditando: “Eu posso estar aqui.”

O futuro do movimento é promissor. Planos de expansão, mais encontros regionais, novas parcerias com marcas conscientes, ações de formação para meninas negras e até a possibilidade de novos projetos audiovisuais estão no horizonte. E mais do que isso: há um crescente reconhecimento de que o surf brasileiro não é completo sem as suas surfistas negras — sem as suas histórias, as suas lutas e as suas ondas conquistadas.

Érica Prado iniciou esta onda, mas agora ela transformou-se em maré. Uma maré de representatividade, coragem, mudança e, sobretudo, liberdade. E, como toda a boa maré, ela veio para ficar.

Vê abaixo a entrevista incrível que Érica concedeu à GOB, nesta semana, nas vésperas do próximo encontro do Movimento Surfistas Negras:

O Movimento Surfistas Negras tem ecos em iniciativas internacionais. O que, nessa representatividade global, te inspirou a criar, adaptar e, ao mesmo tempo, reinventar para o contexto brasileiro? Que elementos sentiste que precisavam de ser traduzidos para a realidade brasileira e quais permaneceram como pilares universais da luta por espaço e visibilidade no surf?

Sim, tem ecos de iniciativas internacionais, como a Black Girls Surf e a Brown Girls Surf, na Califórnia. Elas me inspiraram porque percebi que, no Brasil, não existia espaço para o diálogo sobre racismo no surf — o que tornava essa pauta invisibilizada. A partir do momento em que fui conquistando espaço e trabalhando como jornalista, repórter, comentarista e fazendo publicidades, percebi que poderia usar minha voz e esse espaço para falar de um tema tão importante, a fim de trazer mulheres parecidas comigo para a luz e para a visibilidade que sempre mereceram. Foi um momento em que caiu a ficha e pensei: Isso também acontece no Brasil, e ninguém fala sobre.

Eles dizem que não existem surfistas negras porque não conhecem surfistas negras. Como assim não conhecem Tita Tavares, Nuala Costa, Suelen Naraísa? Já cansei de fazer testes para comerciais e ouvir: “A primeira surfista negra que conheço é você.” Isso mostra como tantas mulheres incríveis que vieram antes de mim estavam tendo suas trajetórias apagadas, mesmo sendo inspirações para mim. Então, o Movimento Surfistas Negras foi criado com o intuito de divulgar essas histórias e colocar luz nessas figuras emblemáticas que ajudaram a pavimentar a história do surf brasileiro.

Achas que o Movimento Surfistas Negras nasceu mais da inspiração ou da exaustão? E hoje, como o movimento se organiza na prática — quem faz parte dele, como funciona, que tipo de ações realizam e em quais territórios atuam?

Acho que o movimento nasceu de um mix de sentimentos. Foi exaustão, inspiração e necessidade. Cheguei ao meu limite e pensei: Não dá mais, preciso fazer alguma coisa.

Hoje, o movimento se organiza de diversas formas. Somos um coletivo. Temos um grupo de WhatsApp com 200 mulheres que se escutam, se acolhem e se incentivam. Trocamos informações, dicas e oportunidades de trabalho. É empoderamento e acolhimento de uma rede de mulheres do Brasil e do mundo, porque também temos integrantes de outros países. Além disso, temos o Instagram, onde divulgamos nossos trabalhos e resgatamos histórias das que vieram antes de nós. Hoje, já são 38 mil seguidores. Temos também uma equipe de surfistas profissionais que competem e, infelizmente, não contam com patrocínio principal ou suporte empresarial. Então, o movimento ajuda a empresariar, conectar com possíveis patrocinadores e até apoiar com inscrições de campeonatos e suporte emocional.

Por fim, realizamos nosso encontro anual — que este ano será em Maracaípe — e também eventos menores, como o Surf Day, onde surfamos e nos conectamos. Nessas atividades, oferecemos dança, yoga, capoeira e outros esportes para quem não quer necessariamente surfar. Já recebemos mulheres que nunca tinham ido à praia ou que não sabiam nadar, e que saíram de lá surfando, porque se sentiram acolhidas e seguras para experimentar algo novo.

Quais são os tipos de apoio ou patrocínio que o movimento recebe hoje? E, quando esse apoio não vem da forma esperada, como têm lidado com a sustentabilidade financeira para manter viva uma causa que vai muito além do desporto?

Atualmente, o movimento não tem patrocínio ou apoio financeiro fixo de nenhuma iniciativa privada. A gente se vira como dá. Temos nossos produtos, como camisetas, que vendemos pelas redes sociais. E, quando fazemos eventos, cobramos um valor acessível de inscrição. Essa verba é direcionada para o que o movimento está precisando naquele momento — pagar contas ou ajudar atletas. Divulgar o movimento não só nos dá visibilidade, mas faz com que as pessoas percebam que precisamos de ajuda financeira. Hoje, muitas marcas ajudam com produtos, o que é muito bom, mas os produtos não pagam contas. O que mais precisamos são apoios recorrentes.

Ao mesmo tempo que o surf é uma ferramenta de transformação, e para muitos um sinónimo de liberdade, ainda está longe de ser uma prática “para todos”. Tu, que há pouco fizeste uma viagem à África e conheces também muito bem a realidade do Brasil, o que achas que é preciso para ser um desporto mais inclusivo e menos sexista?

Acredito que o surf é uma ferramenta de transformação, que deveria ser para todos, mas o acesso é negado. Podemos mudar essa realidade através de iniciativas que dêem acesso real — e essas iniciativas nem sempre virão de grandes empresas.

Conheço diversos projetos sociais que fazem a diferença, como o TPM — Todas Para o Mar, em Pernambuco, ou o Favela Radical, no Rio de Janeiro. Essas iniciativas devolvem à nova geração — em sua maioria crianças pretas — a possibilidade de experimentar um esporte novo e de acessar a praia, algo que vem sendo negado ao longo dos anos, como por exemplo no Rio de Janeiro, com a redução e mudança de rotas de ônibus, dificultando o acesso à orla. A pessoa que mora longe da praia enfrenta mais obstáculos e gasta mais dinheiro para chegar, tornando a praia um espaço elitizado. E se uma prancha custa 2.000 ou 3.000 reais, obviamente não será acessível para muitos. O problema está aí e é fácil de visualizá-lo, mas a mudança tem que acontecer na prática — e não necessariamente virá de grandes empresas ou do poder público. Cada pessoa pode ajudar: doando uma prancha parada, contribuindo financeiramente com o que puder ou apoiando surfistas que muitas vezes estão online pedindo ajuda para competir.

Que verdades desconfortáveis sobre o mercado do surf acreditas que ainda precisam de ser ditas? Seja através do feminino, do racismo…

Algumas questões são desconfortáveis para quem está em situação de privilégio e não quer abrir mão desse privilégio. Acham desconfortável dizer que o surf é elitista, machista e racista — mas geralmente quem acha isso é um homem branco, hétero, com acesso.

Uma pessoa que tem letramento racial, empatia e consegue olhar ao redor percebe que o surf não é um esporte democrático, que não é um espaço para todos. Mas é difícil furar a bolha para entender um problema que não faz parte da sua realidade. Em qualquer espaço — surf trip, piscina de ondas, campeonato — pergunte-se: quantas pessoas negras existem aqui? Se não estão, é porque não querem ou porque não têm oportunidade e patrocínio?

De que forma a tua trajetória como ex-surfista profissional e jornalista te ajudou não só a criar o projeto, mas a mantê-lo como um movimento em fluxo até hoje? Acreditas que é uma fusão de todas as frentes em que atuas e a forma como te posicionas perante as coisas em que acreditas, que fazem o movimento realmente acontecer?

Sim, acredito que é a união de tudo que me formou na mulher que sou hoje. O fato de minha mãe ter me estimulado a fazer jornalismo, as oportunidades que tive na carreira e a bagagem que conquistei como ex-competidora me fazem entender muito bem o lado do surfista amador, do competidor, do profissional e do atleta sem patrocínio. Tudo é um processo. Minha cabeça de hoje não é a mesma de 15 anos atrás, quando eu competia profissionalmente. A gente amadurece e continua aprendendo — entendendo como essa máquina gira, o que acontece em determinadas situações e tendo coragem para questionar estruturas. É uma junção de 25 anos de experiência no surf, 17 anos como jornalista e um lado ativista que já existia antes das Surfistas Negras, por outros movimentos dos quais fiz parte. Sempre questionei muito.

O encontro nacional de Surfistas Negras, que acontece agora nos dias 21 e 22 em Maracaípe, marca um momento importante para o movimento. Que mensagem esse encontro procura passar?

É um marco muito importante para nós, e realizar um evento no Nordeste é muito potente. Já temos grandes presenças confirmadas: Atalanta Batista, hexa-campeã profissional no longboard; Monik Santos, bicampeã brasileira profissional; Nuala Costa, grande ativista do surf negro; Nicole Santos, grande nome da nova geração; entre tantas outras. Conseguimos reunir mulheres de peso de diferentes gerações. Pela primeira vez, o evento terá dois dias e não apenas um.

Nossa mensagem é que o surf é também um espaço para mulheres negras, que pode ser acolhedor e que juntas somos mais fortes.Quando mulheres negras se unem, a gente abala as estruturas e transforma vidas. Saímos desses eventos mais fortes e capazes de transformar tudo o que quisermos. Estou contando os dias e horas para este evento, que será o maior que já realizamos.

De que forma projetos como o Movimento Surfistas Negras, a Girls on Board e outras iniciativas podem abrir caminhos para que mais mulheres ocupem novas narrativas e posições?

Acredito que abrir caminhos é sair do campo do discurso e levar para a prática a mudança que queremos ver. Nas Surfistas Negras, sempre falo sobre oportunidades para mulheres negras no mercado de trabalho. Então, sempre que tenho oportunidade de contratar alguém para uma sessão de fotos ou evento, contrato mulheres negras. Neste evento em Pernambuco, vamos gerar 25 vagas de trabalho para mulheres não brancas, em duas diárias. São trabalhos temporários, mas geram renda e experiência. O evento é exclusivo para mulheres, então não faz sentido contratar homens. E quando alguma marca me contrata e dá liberdade para escolher fotógrafa, cinegrafista, etc., faço questão de contratar mulheres.

O mercado masculino já é extremamente fortalecido, e os homens se indicam o tempo todo. Muitas vezes dizem que mulheres não têm experiência — mas se ninguém der oportunidade, como elas vão adquirir experiência? É sobre fazer na prática, não apenas fazer barulho nas redes sociais. Contratar mulheres em cargos de liderança quando possível. E questionar essa estrutura racista o ano inteiro — não apenas em novembro, no mês da Consciência Negra. Esse recorte pontual é cansativo para nós. Em dezembro, tudo some, e seguimos invisibilizadas, mesmo que nossa luta seja diária.

A dica é essa: pensar nessas causas ao longo de todo o ano — seja no movimento negro, seja no feminismo. Não é uma pauta pontual de datas comemorativas.

*fotos @Surfistas Negras

NEWSLETTER

Inscreva-se na nossa newsletter e faça parte desse movimento que conecta ideias, histórias e transformações.

Receba conteúdos inspiradores, eventos, projetos e oportunidades diretamente no seu e-mail.

Artigos Relacionados

novembro 21, 2025

Amores Sem Amarras: Como Marcela Aroeira Desafia o “E Depois Viveram Felizes Para Sempre”

novembro 19, 2025

Lunação em Escorpião

Mais conteúdos

Amores Sem Amarras: Como Marcela Aroeira Desafia o “E Depois Viveram Felizes Para Sempre”

Lunação em Escorpião

Hygge Latino: Quando o aconchego encontra a alma quente da casa

Negra Li solta o grito preso na garganta: “O Silêncio Que Grita” Chega Como Manifesto Político

Quando as Mulheres Lideram: O Impacto Positivo na Sociedade e na Política

Carreira e Maternidade: Transformando Experiências Pessoais em Liderança Empresarial

12 Mulheres que Levaram o Corpo ao Limite – E Redefiniram a História

Entre rios e raízes: quando escuta e ação transformam territórios

Tiny Desk Brasil: quando o palco cabe numa mesa de escritório

Faça parte da (r)evolução

Coming Soon