Descobre o significado espiritual e cultural do “Día de los Muertos” e como esta celebração pode transformar a forma como olhamos para a vida, a perda e o amor que permanece

Há datas que nos convidam a silenciar. O “Día de los Muertos”, celebrado entre os dias 1 e 2 de Novembro, no México e em outras partes da América Latina, é uma dessas ocasiões em que o tempo parece desacelerar. É o momento em que as fronteiras entre o mundo dos vivos e o dos que já partiram se tornam porosas — não para causar medo, mas para lembrar que a morte também é parte da vida.
A morte como continuidade, não como um fim
Em muitas culturas, a morte é tratada como uma interrupção: o ponto final de uma história. Mas, noutras tradições e culturas, ela é apenas uma passagem — um regresso à essência. O “Día de los Muertos” traz exatamente essa visão: a de que os nossos entes queridos continuam connosco, não apenas na memória, mas na energia que deixaram espalhada pelo caminho.
Segundo Sandra Sofiati, terapeuta e guardiã de saberes ancestrais, na tradição mexicana a morte não é um fim. “Durante o “Día de los Muertos”, as famílias honram a memória dos seus mortos, preparando altares, enfeitando as ruas com flores cempasúchil, acendendo velas e cozinhando as comidas que eles mais gostavam. Celebrar a morte é celebrar a vida que não termina”, partilha numa entrevista à GoB.

Altares, cores e símbolos: celebrar a vida com consciência da morte
Os altares são montados com flores, velas, iguarias preferidas e fotografias. Tudo é cor e celebração. Não há luto pesado, há gratidão. “A morte é celebrada com uma grande festa. Nestes dias, recebemos os que já partiram com o máximo de beleza e alegria. E é por isso que existem tantas cores, aromas, músicas, comidas”, enfatiza.
Cada detalhe desta celebração tem, assim, um simbolismo profundo:
– As calaveras (caveiras) representam a aceitação da morte como parte da existência. Elas são coloridas, alegres, cheias de vida.
– A flor-de-cempasúchil – conhecida como tagete ou cravo-de-defunto em Portugal — com o seu tom alaranjado intenso, simboliza o sol e serve de guia para as almas que regressam.
– As velas iluminam o caminho de volta.
– E o pão de morto, doce tradicional da época — com formato arredondado, decorado com tiras de massa em forma de ossos cruzados, e um “crânio” no topo — representa os ossos dos falecidos e a morte em si.
Esta linguagem simbólica relembra algo que muitas vezes esquecemos: honrar a morte é também honrar a vida. Reconhecer a impermanência torna-nos mais presentes, mais conscientes, mais vivos.
O “Día de los Muertos” é, então, uma festa de celebração e não apenas um ritual de lembrança. “Recebemos os que já se foram, com o máximo de beleza e alegria. É uma data para celebrar a queda do véu que separa o mundo visível do invisível, o que possibilita estarmos juntos novamente”, acrescenta Sandra.
As famílias mexicanas reúnem-se em cemitérios, dançam, cantam e partilham refeições.
Juntos celebram os mortos como se celebrassem a vida. E essa leveza não vem da negação da dor, mas da compreensão de que o vínculo com quem amamos não se rompe com a morte — apenas muda de forma.

O corpo como canal de cura
Para muitos, falar de morte ainda causa desconforto. Vivemos numa cultura que a evita, que prefere não olhar. Sandra explica que o corpo é depositário de emoções não expressas e pode ser um canal para libertar o luto: “Um luto mal feito, onde a dor não pode ser sentida ou o choro não pode ser chorado, produz um corpo enrijecido e cristalizado. Na leitura corporal identificamos bloqueios que, uma vez abrandados, libertam a energia estagnada em formas emocionais: choro de dor, raiva, lamento, falta.”
A terapeuta acrescenta, ainda, que a sabedoria do corpo também nos ensina sobre a finitude da vida: “Há um momento na vida em que a curva vital começa a decair. Aceitar os limites físicos e a presença da morte ajuda-nos a reinventar a vida sem deixar que ela perca potência.”
Rituais que transformam o quotidiano e um convite à reflexão pessoal
Neste “Día de los Muertos”, ou em qualquer outro dia em que a saudade apertar, permite-te lembrar os que já partiram, com amor. Cria o teu próprio ritual — acende uma vela, escreve uma carta, prepara um prato que te lembre alguém especial. Estes gestos simples reacendem o vínculo e lembram-nos que o amor não morre — ele apenas muda de lugar.
Para Sandra Sofiati, quando questionada sobre o que esta data representa para si, como mulher, terapeuta e guardiã de saberes ancestrais, a resposta sintetiza a profundidade do “Día de los Muertos”: “Como terapeuta reconheço — porque vejo isso a acontecer à minha frente — a importância deste ritual, durante o qual muitas reparações são feitas. Muitos processos emocionais acontecem: a oportunidade de perdoar e de ser perdoado, de comunicar o que não pôde ser dito, de agradecer, entre outros. E como guardiã desses saberes ancestrais, ganho a satisfação de ajudar pessoas, no seu processo de luto, com um trabalho tão antigo e tão profundamente transformador. A criação dos altares é só mais uma prova de que a Psicologia, o trabalho psíquico e emocional, antecede, e muito, o aparecimento da civilização ocidental.”

O ensinamento básico que a morte traz, segundo ela, é que tudo na natureza é impermanente. Isso lembra-nos que não temos tempo a perder com máscaras, auto importância ou falsa modéstia. Ao aceitar a finitude, transformamos o medo da morte em consciência e potência de vida.
Talvez o segredo não esteja em evitar pensar na morte, mas em viver de forma a que a lembrança de quem somos continue a florescer — como as cempasúchiles que voltam a nascer a cada novembro.