Da torra perfeita às origens dos grãos, o Head Barista da Hurley Ericeira compartilha sua jornada e revela os segredos do café especial na capital do surf
Na Ericeira, onde o cheiro de maresia encontra o aroma de café recém-moído, Tarcísio Barros conduz uma verdadeira viagem sensorial. Head Barista da loja da Hurley, ele nos recebe com a calma de quem conhece cada etapa do grão — da colheita à torra, da moagem à extração perfeita.


Da Ilha de Santa Catarina à Costa Portuguesa
Ele iniciou sua jornada em 2017, em Florianópolis, quando trocou o trabalho em bares nas noites agitadas por dias repletos de xícaras e experimentos. “Queria entender cada etapa: como o café é colhido, fermentado, seco e torrado antes de chegar ao balcão”, conta. Foi num trabalho em cafeteria que conheceu pessoas que o inspiraram de verdade: Yan Kruel, Felipe Nobre, Melissa Carvalho e Felipe Glazer. Esses nomes aparecem em seu caminho inicial, ensinando técnicas, métodos, aromas — e o ajudando a perceber que ser barista vai muito além de servir café: trata-se de estudar, sentir e respeitar o grão.
Origem, solo, altitude: terroir do café
A origem do grão influencia tudo. No Brasil, estados como Minas Gerais, São Paulo e Paraná têm solos vulcânicos que favorecem o desenvolvimento das plantas e deixam a xícara com nuances únicas.
A altitude é outro fator decisivo: cafés cultivados em regiões elevadas, como Colômbia e Guatemala, costumam apresentar acidez mais vibrante e notas sensoriais complexas, do frutado ao floral.
Já quando o assunto é tendência de mercado, ele confessa uma paixão pelos grãos africanos, especialmente da Etiópia na região de Yirgacheffe. Ali, as plantas crescem em ambiente quase selvagem e o processamento é mais natural, resultando em cafés exóticos que conquistam baristas e apreciadores no mundo inteiro. “As plantas africanas são mais antigas, menos híbridas. No Brasil, muitas espécies foram geneticamente cruzadas para resistir a pragas. Isso muda o perfil de sabor.”
Para ele, porém, o gole mais memorável veio de perto: um café da Chapada Diamantina, na Bahia, onde clima e altitude se combinam para criar um perfil sensorial inesquecível. “Um clima único, noites frias, dias quentes, solo peculiar”, relembra.



Torra, sabor e retrogosto: a arte do café limpo
Uma das grandes paixões de Tarci — como gosta de ser chamado — é a torra clara ou média, que preserva os açúcares naturais e ressalta doçura, notas florais e frutadas. Ele alerta que a torra escura tende a esconder defeitos do grão e gerar amargor, produzindo o típico sabor “queimado”. “Carbonizam o grão e destroem a complexidade — é o que dá gastrite e obriga as pessoas a usar açúcar”, explica. Para ele, um bom café não termina no gole. “O retrogosto é fundamental: quando o café é bem extraído, ele deixa um sabor bom na boca, não aquele amargor.”
Um café bem extraído não deixa aquela sensação áspera que muitos associam a café forte; pelo contrário, permanece limpo e agradável, permitindo que camadas de sabor se revelem em diferentes pontos da língua, lembrando a experiência de provar um bom vinho.
Fermentação e água: novas fronteiras
Os cafés fermentados, que passam por processos controlados de fermentação após a colheita, estão abrindo novas possibilidades no mundo do café. Segundo Tarci, esse tipo de café cria sabores mais ousados e complexos, com notas frutadas, florais ou até licorosas, dependendo do processo e da duração da fermentação. Ele acredita que essa é uma tendência que vem mudando a curva de consumo, atraindo tanto consumidores casuais quanto especialistas em busca de experiências sensoriais diferenciadas.
Outro ponto crucial, muitas vezes negligenciado é a água utilizada na extração. Tarci observa que a qualidade e composição da água impactam diretamente no sabor final. Águas com pH mais alto ou passadas por osmose reversa – processo para desmineralizar a água – podem extrair sabores que a água comum não revela, valorizando notas sutis do café e tornando a bebida mais equilibrada.



Do nano lote ao comércio justo: valor, sustentabilidade e comunidade
Tarcísio Barros também destaca o papel central dos pequenos produtores e das cooperativas na produção de cafés especiais. “Cafés especiais exigem beneficiamento cuidadoso: colheita manual, secagem suspensa, seleção por cor e tamanho. Isso agrega valor e melhora a renda local”, explica. Em algumas regiões da Colômbia, por exemplo, a geografia montanhosa impede o uso de máquinas, obrigando a colheita manual e criando fermentações naturais durante o transporte, o que influencia diretamente o perfil de sabor da bebida, assim como seu preço.
Pequenos trechos de plantação, conhecidos como microlotes e nanolotes, permitem que o produtor explore condições específicas de solo, altitude e exposição ao sol. Essa atenção aos detalhes gera cafés únicos e altamente valorizados no mercado, permitindo que os produtores vendam seus grãos por preços superiores, refletindo todo o cuidado investido.
A sustentabilidade também é uma prioridade. “Quando um produtor usa adubos naturais e reaproveita resíduos da própria fazenda, ele protege a terra e consegue um café com valor agregado. É bom para o planeta e para quem bebe”, afirma ele, lembrando que práticas conscientes impactam tanto o meio ambiente quanto a qualidade final da xícara.
Exemplo brasileiro: a Fazenda Nova Cintra, em Espírito Santo do Pinhal – São Paulo, é referência nesse movimento. Desde 2011 tinha o selo de agricultura sustentável e após passar por um processo conduzido pelo Imaflora – Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola foi recentemente reconhecida com certificação internacional de agricultura regenerativa da Rainforest Alliance, sendo a primeira fazenda no Brasil a atender os critérios adicionais exigidos para tal certificação.
A propriedade investe em técnicas que restauram o solo, preservam a biodiversidade e capturam carbono, transformando cada safra em um ciclo de renovação ambiental. Essa abordagem garante grãos de altíssima qualidade e fortalece a comunidade local, provando que café especial pode ser sinônimo de impacto positivo para o meio ambiente e para as pessoas.
O comércio justo entra como elo fundamental dessa cadeia: ao escolher cafés especiais de pequenos produtores ou cooperativas, o consumidor contribui para que famílias e comunidades locais recebam remuneração justa e condições de trabalho dignas. Esse apoio incentiva a qualificação técnica dos produtores, fortalecendo o conhecimento local, estimulando a produção de cafés cada vez melhores e criando um ciclo de valorização e responsabilidade social.
Para o Head Barista, apoiar essas produções vai muito além do sabor: é valorizar pessoas, território e tradição, garantindo que cada xícara de café conte uma história de cuidado, qualidade e impacto positivo.


Mulheres que mudaram o jogo do café
O universo do café tem cada vez mais protagonistas femininas — do campo à xícara.
Isabela Raposeira – Fundadora do Coffee Lab em São Paulo e do Curso Raposeira, é uma das mais influentes profissionais do café no Brasil e no mundo, conhecida como a “Rainha do Café”. Referência em educação e pesquisa de cafés especiais no Brasil, ela defende uma cadeia transparente, com pagamento justo aos produtores e incentivo a mulheres em todas as etapas.
Baobá Café – Com sua própria fazenda em São Sebastião da Grama – Brasil e cafeterias no Estado de São Paulo e em Lisboa – Portugal, são especialistas em cafés especiais.
No ano passado, em homenagem ao dia da mulher, criaram um microlote chamado de Mulheres, em que todas as etapas – de ponta a ponta – foram executadas exclusivamente por mãos femininas. O lote de torra média e naturalmente fermentado traz notas de frutas vermelhas, limão sicilano e acidez cítrica.
A Sargento Martinho – A marca portuguesa nasceu da história real de uma das primeiras enfermeiras pára-quedistas de Portugal, que atuou em missões de busca e salvamento em África nos anos 1960. Quando a guerra terminou, ela deveria regressar a Lisboa, mas decidiu ficar. Em vez de voltar, investiu suas economias numa fazenda de café selvagem que avistava do helicóptero durante as operações. Com a ajuda de amigos locais, recuperou a plantação e criou uma pequena comunidade em torno da cultura do café.
Hoje, a marca honra essa trajetória de coragem feminina e mantém o compromisso com práticas sustentáveis, mostrando como café e independência podem caminhar lado a lado.
Não à toa, é a marca que Tarcísio escolheu para a Hurley: “Além de cafés incríveis, tem identidade local e respeito à tradição lusófona.”



Inspiração japonesa: o método 4:6 de Tetsu Kasuya
Quando perguntamos quem o inspira hoje, ele não hesita: Tetsu Kasuya, campeão mundial de Brewers Cup em 2016 e criador do famoso método 4:6 de extração.
Esse método, pensado para a V60, divide a água em duas fases: 40% para o equilíbrio entre doçura e acidez e 60% para controlar intensidade e corpo. A precisão e a filosofia minimalista de Kasuya reforçam para Tarci que fazer café é tanto ciência quanto arte. “Ele mostra que cada detalhe — temperatura, vazão da água, granulometria — muda completamente a bebida”, comenta.
Dicas de mestre para o café em casa
Para quem quer evoluir além do café de supermercado, Tarcísio sugere passos simples:
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Escolha a torra: fuja dos “extra fortes”. Prefira intensidade média e torra clara.
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Controle tempo e água: extração de até 4 minutos. Água a 90–92 °C.
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Moagem na hora: café em grão preserva os óleos e nuances. Um moedor manual já faz diferença.
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Filtro com calma: V60, Melitta ou Chemex. “Não afogue o café — vá adicionando água em etapas, de forma suave.”
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Comece pelo gourmet: se o especial parecer caro, escolha um café gourmet de supermercado. “É um degrau para o paladar evoluir.”
Ele enfatiza que pequenas mudanças na água podem transformar a xícara, assim como ajustar a moagem, a quantidade de pó e o tempo de extração são fundamentais para um café de qualidade.
O tempo de extração é o período em que a água entra em contato com o café moído, dissolvendo os sabores, açúcares, óleos e ácidos presentes no grão. “Se a extração for muito curta, a água não consegue dissolver todos os sabores, resultando em um café fraco ou sub extraído, com acidez exagerada ou falta de corpo. Por outro lado, se a extração for muito longa, a água dissolve demais os componentes do café, trazendo amargor e sabores queimados, caracterizando um café sobre-extraído”. Por isso, ele recomenda não ultrapassar 4 minutos, principalmente em métodos de filtrado como V60 ou Melitta. Esse tempo garante que o café tenha sabor equilibrado, um retrogosto agradável e uma bebida limpa.


Ética, cultura e futuro
Apesar do avanço da chamada terceira onda — de valorização do terroir, da torra clara e da sustentabilidade — Tarci lembra que a qualidade ainda enfrenta obstáculos em vários países. Em alguns mercados, os órgãos reguladores permitem que “restos” ou impurezas — materiais que não são café — entrem na composição do produto final. No Brasil, por exemplo, os selos de qualidade da ABIC (Associação Brasileira da Indústria de Café) permitem determinado percentual de grãos defeituosos ou impurezas. Para ele, o desafio vai além da técnica: é uma questão de bioética, pois envolve transparência com o consumidor e respeito ao trabalho do produtor que cultiva cafés de alta qualidade.
Para Tarci, o café transcende a xícara: “Às vezes, brincamos que muitas decisões importantes do mundo foram tomadas em torno de uma mesa de café. É parte da nossa cultura e da gastronomia.”
Ele acredita que essa terceira onda está apenas começando. Da costa brasileira às falésias da Ericeira, sua história prova que café é mais do que energia para o dia; é encontro, é geografia líquida, é memória sensorial. Para quem ama café, fica a dica: a próxima xícara pode ser uma viagem.