A força sem pausa cobra um preço alto: é tempo de falar sobre o cansaço emocional e físico das mulheres que nunca deixam cair a guarda
Por Daniela Branco
No consultório, ouço frequentemente o eco de uma exaustão que não é apenas física; é psíquica, é ancestral. É a mulher que aprendeu cedo a não precisar, a não chorar, a não pedir. Porque precisava ser funcional para ser amada.
O falso “self” da guerreira pesa, e a armadura começa a apertar.
Na psicanálise winnicottiana (desenvolvida pelo pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott), sabemos que, quando não há espaço para o gesto espontâneo na infância, a criança cria um falso “self” para se adaptar. Muitas mulheres fizeram isso tão bem que, já adultas, nem percebem que vivem em modo de sobrevivência — mas há algo que incomoda. Perguntamo-nos: Porquê tanta culpa? Porque sentimos que só somos boas o suficiente quando damos conta de tudo?
A verdade é que a mulher que o mundo aplaude como guerreira, muitas vezes, carrega uma culpa que não é dela. Uma culpa aprendida cedo: por querer demais, por sentir demais, por ser demais.
A psicanálise ajuda-nos a entender que a culpa nem sempre nasce de um erro real. Ela também nasce de um ideal — do que esperam de nós, do que nos disseram que deveríamos ser. Mas a mulher que serve todos o tempo todo, não serve a si própria. Ela adapta-se, cala-se, dissolve-se e chama a isso força. Podemos, antes, chamar-lhe apagamento.
Essa produtividade incessante e esse cuidado sem fim são socialmente aplaudidos, mas emocionalmente insustentáveis.
A culpa surge quando a mulher acredita que a sua existência está condicionada à entrega. Que só vale se estiver a fazer muito. Que só será reconhecida se se esgotar com um sorriso no rosto.
A psicanálise, como ferramenta de autoconhecimento, oferece uma escuta radical — uma oportunidade de parar e perguntar o que, de facto, é seu. O que deseja, sente, repete. E o que está a fazer apenas porque aprendeu que “tem” de ser assim. Na escuta analítica, culpa não é apenas remorso; é também o resultado de uma cisão entre o que esperam de nós e quem realmente somos. Entre o desejo do Outro[1] e o nosso próprio gesto. Por isso, cuidar de si não é egoísmo. É reescrever o enredo. É deixar o lugar da mulher que se cala e ocupar o lugar da mulher que se ouve.
A culpa só perde força quando damos voz ao que ela tenta sufocar.
O que está a ser calado enquanto nos afogamos em tantas demandas? Quantos desejos deixamos de ouvir para corresponder a expectativas? Quantas vezes o silêncio sobre o nosso próprio mal-estar se disfarça de competência?
Ou… apenas aprendeu a guardar e silenciar. “Depois, depois faço isto para mim.” O corpo não sabe esperar; ele sente. Quando a palavra falha, ele fala: insónia, dor no peito, tensão, apatia, aceleração, cansaço crónico. O corpo sente antes da consciência e pede socorro mesmo quando a mente diz que está tudo bem.
Ser guerreira pode ter sido necessário, mas permanecer nesse lugar sozinha não é coragem, é prisão.
É preciso espaço para desmontar. Para baixar a guarda sem medo de deixar de ser amada. Para deixar cair o bastão da perfeição. Cuidar também é dizer “basta”. Ser forte também é dizer o que precisa e o que já não é possível fazer.
[1] Na psicanálise lacaniana (do psiquiatra e psicanalista francês Jacques Lacan), o “Outro” com O maiúsculo — o grande Outro — representa a sociedade, a cultura, os discursos que nos atravessam desde cedo. É o conjunto de normas, expectativas e ideias que aprendemos e acabamos por assumir como verdade. Muitas vezes, vivemos a tentar responder ao desejo desse Outro e esquecemos de escutar o nosso próprio querer.