Da Lisboa pós-revolução aos salões de Versalhes, a artista portuguesa conquista o mundo celebrando o feminino e transformando o banal em épico
Imagina um candelabro de seis metros feito com 14 mil tampões higiénicos, suspenso no ar como uma jóia controversa e luminosa. Ou um helicóptero rosa coberto de penas de avestruz, pairando nos jardins de Versalhes como um sonho kitsch saído de um conto de fadas subversivo. Ao fazer arte, Joana Vasconcelos conjura mundos onde o quotidiano se rebela contra a gravidade, convidando-nos a rir, a questionar e a sonhar.
De Paris a Lisboa: Raízes Nómadas e um Regresso Triunfal
Nascida em 1971 em Paris, filha de pais exilados durante a ditadura salazarista, Joana Vasconcelos regressou a Portugal com a família após a Revolução dos Cravos, em 1974. Cresceu entre a efervescência cultural de Lisboa e as memórias de um exílio que moldaram o seu olhar curioso sobre o mundo. Formada no Centro de Arte e Comunicação Visual (Arco), onde estudou joalharia, vidro e cerâmica, a artista descobriu cedo o prazer de manipular materiais humildes. “Fui treinada como joalheira e, de certa forma, ainda penso assim. A única diferença é a escala”, disse ela numa entrevista recente à Ocula, revelando como essa formação artesanal a leva a construir esculturas como se fossem colares gigantes, onde um erro significa recomeçar do zero.
O seu percurso não foi linear, mas sempre intuitivo. Dos primeiros trabalhos em vidro e crochet aos grandes projectos colaborativos de hoje, Vasconcelos construiu uma carreira que celebra a herança portuguesa – os azulejos, os bordados, as rendas – sem cair no folclore nostálgico. “Não és dissociável do teu país, da tua cultura. Podes sair, mas as referências ficam”, disse ela ao Gerador, sublinhando como Lisboa, com o seu atelier de 60 pessoas, é o epicentro da sua criação. Ali, artesãos, engenheiros e performers tecem uma rede viva, onde a arte não é solitária, mas colectiva, como uma festa de família expandida.

Reprodução: Luís Vasconcelos

Reprodução: Atelier Joana Vasconcelos
A Noiva Rebelde: O Salto para a Fama Internacional
Tudo mudou em 2005, na 51.ª Bienal de Veneza, quando “A Noiva” – uma escultura monumental de tampões que brilha como um lustre barroco – capturou os olhares do mundo. Feita entre 2001 e 2005, a peça transforma um objecto íntimo e descartável em símbolo de opulência feminina, questionando tabus com humor leve e ironia afiada. “Teve muito a ver com o casamento de uma amiga que decidiu casar-se de branco. O vestido branco, a perfeição, a virgindade… Nesse dia, a mulher transforma-se num objeto”, declarou na altura ao El País. Vasconcelos, então com 34 anos, tornou-se uma das vozes mais frescas da arte contemporânea, misturando pop art com ready-mades duchampianos, mas sempre com um twist português: o exagero festivo, o brilho excessivo.
“A Noiva” não foi só provocação; foi declaração. “Uso o objecto exactamente como é, descontextualizando-o da vida quotidiana”, explicou a artista à Ocula, ecoando influências de Marcel Duchamp e Donald Judd, mas ancorada na tradição do Novo Realismo. A peça viajou por galerias globais, de Londres a Nova Iorque, ao mesmo tempo que foi sendo barrada em algumas instituições, reforçando o seu estatuto de obra controversa.
Um desses lugares foi o Palácio de Versalhes, em 2012. Apesar de ser a peça central planeada para a mostra, as autoridades do château recusaram a sua instalação, considerando-a uma “obra sexual inadequada” para o espaço histórico. A decisão gerou polémica, especialmente porque a diretora do museu na altura, Catherine Pégard, era mulher. Mesmo sem “A Noiva”, a exposição atraiu 1,6 milhões de visitantes, provando que a controvérsia só amplificou o impacto da artista portuguesa no circuito internacional.

Reprodução: Luís Vasconcelos

Reprodução: Orsenigo Chemollo
Versalhes em Cor-de-Rosa: A Invasão Kitsck que Conquistou a França
Apesar do percalço, Versalhes foi lugar de consagração: Joana Vasconcelos foi a primeira mulher e a artista contemporânea mais jovem a expor no luxuoso palácio francês, transformando os salões Luís XIV em palco para as suas criações vibrantes. “Coração” – um coração gigante de talheres de plástico translúcido vermelho, ferro pintado, correntes de metal, motor e sistema de som (que reproduz fados como Estranha Forma de Vida de Amália Rodrigues) – pulsava na Capela Real, enquanto Ninho – uma estrutura de metal em forma de ninho gigante (aprox. 4 metros de diâmetro), revestida com milhares de almofadas de aquecimento elétricas – foi exibido no Grande Apartamento. E o helicóptero “Lilicoptère”, coberto de penas e missangas, pairava nos jardins como uma ave mítica saída de um carnaval lisboeta.
A exposição foi um triunfo estrondoso: críticos elogiaram como ela dialogava com o barroco francês, subvertendo a pompa real com materiais do quotidiano num espelho irónico à opulência do passado. A imprensa internacional, do The New York Times ao Le Figaro, destacou a ousadia de uma portuguesa que trouxe cor e humor a um palácio de mármore e dourado, provando que a arte contemporânea pode dançar com a história sem perder o ritmo. Dali, veio o convite para representar Portugal na Bienal de Veneza de 2013, com “Trafaria Praia”, uma galeria flutuante ancorada num barco de pesca tradicional, que misturou arte, performance e convívio popular – um cacilheiro convertido em palco vivo, onde visitantes navegavam entre azulejos, música ao vivo e petiscos, celebrando a alma marítima e festiva de Lisboa no coração da laguna veneziana.

Reprodução: Luís Vasconcelos

Reprodução: Lionel Balteiro | LaMousse
Valkyries e Árvores da Vida: Homenagens às Mulheres Invisíveis
A série “Valquírias”, iniciada em 2004 como protótipos portáteis, evoluiu para hinos monumentais a mulheres esquecidas. “Valquíria Mumbet” (2020), a sua primeira exposição solo nos EUA, no MassArt Art Museum de Boston, homenageia Elizabeth Freeman, uma mulher escravizada que, em 1781, lutou pela sua liberdade e ajudou a abolir a escravatura em Massachusetts. Uma figura inflável de 10 metros, tecida com bordados e luzes, flutua como uma deusa guerreira, celebrando resiliência com cor e movimento.
“Estes trabalhos servem para descobrir mulheres esquecidas de todo o mundo”, disse Vasconcelos à Ocula, referindo-se a peças como “Valquíria Seondeok”, inspirada na rainha coreana do século VII, ou “Valquíria Miss Dior”, tributo a Catherine Dior, resistente francesa e musa floral. Em 2023, durante o confinamento da Covid-19, criou “Árvore da Vida”, com 140 mil folhas bordadas à mão por equipas remotas – um símbolo de esperança colectiva, exposto no MICAS de Malta em 2024. “Queria assinalar um novo começo, que podes sempre sair das coisas e fazer algo diferente”, partilhou ela, transformando isolamento em acto de união.
A retrospectiva “I’m Your Mirror” no Guggenheim de Bilbau, em 2018 – a única de uma artista portuguesa no museu – reuniu 30 obras de 25 anos de carreira, de “A Noiva” a “Contaminação”, provando como Vasconcelos transforma espaços com “contágios positivos”. “É uma contaminação positiva, mas é uma contaminação”, brincou ela.

Reprodução: Didier Plowy cortesia Centre des Monuments Nationaux

Reprodução:@joanavasconcelosatelier
O Atelier como Portal: Diálogos com Arquitectura e Sustentabilidade
No coração de Lisboa, o atelier de Vasconcelos é mais que um estúdio: é utopia criativa. “Quanto mais artes e pessoas se cruzam, mais potencialidades se geram”, afirmou ao Gerador, descrevendo um espaço que acolhe performances, yoga e debates, aberto à sociedade como “um espaço de reflexão artística”. Ali, desenhos dão lugar a modelos 3D, artesãos tecem com tecnologia e o artesanal abraça o futurismo.
O diálogo com a arquitectura é basilar. “O mais interessante do meu trabalho é o diálogo entre escultura e arquitectura”, disse à Ocula, recordando como adaptou “Valquíria Egeria” (uma escultura monumental suspensa do teto, com um grande “corpo” bulboso do qual saem braços alongados que atingem diferentes alturas) a um dos átrios do Guggenheim de Bilbau, ou como encaixa peças novas no oval do MAAT, em Lisboa.
A sustentabilidade do processo criativo começa dentro: “Por isso temos healers e yoga no estúdio”, explicou à Ocula, revelando uma abordagem holística onde o bem-estar da equipa (com sessões de meditação, práticas de cura energética e equilíbrio emocional) é fundamental. No atelier, materiais reciclados, processos de baixo impacto e colaborações éticas complementam a sua visão artística, onde responsabilidade ambiental e consciência social se entrelaçam com a criação estética.
Como mulher portuguesa, Vasconcelos amplifica vozes silenciadas. “Se não lido com essas coisas, não sou sincera. Preciso de ser voz para mulheres que não a têm”, declarou, ecoando a luta por igualdade que permitiu o seu próprio caminho. Sonha transformar o atelier num museu aberto, inspirando jovens: “Quero que digam: ‘Um dia posso ter um estúdio assim’.”

Reprodução: Luís Vasconcelos

Reproduçaèo: Lionel Balteiro | LaMousse
Um Futuro Bordado de Esperança
Aos 54 anos, Joana Vasconcelos continua a expandir horizontes, de “Enchanted Forest” (floresta urbana de tecidos tricotados e luzes neon) em Hong Kong a projectos com a Dior que saltam da passerelle para o museu. A sua arte, leve como uma pluma mas profunda como uma raiz, lembra-nos que o banal pode ser épico. Numa era de cinzentos, ela tece cor, convidando-nos a acreditar: podemos construir um mundo diferente, um ponto de cada vez.
*fotos tiradas do site de Joana Vasconcelos

