Resistência em Verso e Batida
Aos 45 anos, com 30 de carreira, Negra Li lança o álbum mais político da sua vida. Com participações de Djonga, Liniker e Gloria Groove, O Silêncio Que Grita não é só música – é desabafo, bandeira e terapia em 11 faixas. A primeira mulher a assinar com uma multinacional no rap brasileiro volta ao independente, com banda completa e a coragem de quem já não tem nada a provar. Depois de três tentativas de um álbum e um sinal divino que soou como uma voz física, a rapper da Brasilândia entrega o seu manifesto mais cru, livre e urgente.

Negra Li começou como Liliane de Carvalho na Congregação Cristã no Brasil, onde os primeiros elogios à sua voz despertaram a paixão pela música. Aos 16 anos, começou a interessar-se pelo rap, iniciando a sua trajetória no hip hop como backing vocal. No RZO (Rapaziada da Zona Oeste), grupo de rap de São Paulo fundado nos anos 1990, aprendeu disciplina, flow e referências artísticas, de Wu-Tang a Cássia Eller, enfrentando também o machismo do ambiente.
No início dos anos 2000, conquistou definitivamente a atenção dos media com a participação na faixa Não é Sério, dos Charlie Brown Jr. O seu primeiro álbum a solo – Negra Livre, já editado pela Universal Music – estourou com o single Você Vai Estar na Minha, abrindo portas para publicidade e reconhecimento, apesar das críticas de “traição” ao rap. Desde então, tem explorado vários estilos musicais, do jazz ao samba, do R&B à MPB, procurando ampliar a sua versatilidade e presença musicais.
Mais recentemente, durante a pandemia, testou novos caminhos com singles e três álbuns não concluídos, refletindo sobre autonomia criativa e expectativas externas. A 7 de setembro de 2024, dia em que se batizou na Congregação Cristã, em São Paulo, ouviu uma voz quase física como nunca ouvira: “Estás pronta”. Chamou Drum (Yala Records) para director criativo. Reencontrou Paula Dias, parceira desde 2005. Dois camps intensivos: 4 faixas viraram 11 em 7 meses. Sem pensar em vendas. Só verdade.



O álbum que nasceu de um silêncio que já não cabia
“O álbum surgiu de uma vontade de fazer um balanço do meu crescimento pessoal e do meu lugar no mundo”, explica Negra Li à Girls on Board. “Este disco é a materialização de uma fase de grande reflexão e amadurecimento, onde senti que precisava ser porta-voz não só das vozes silenciadas da sociedade, mas também da minha própria voz.” O título, O Silêncio Que Grita, representa “o conjunto de sentimentos, questões políticas, sociais, raciais e feministas que foram guardadas ou camufladas ao longo do tempo, seja pela sociedade, pelo mercado ou até por medos internos”. É “um grito preso na garganta que finalmente é liberado, um manifesto de autonomia e liberdade”.
Lançado a 30 de maio de 2025 pela Negra Li Produções, o disco é 100% independente. “Assinar com uma grande gravadora em 2006 foi um marco histórico para mim e para o rap brasileiro”, recorda. “Anos depois, o retorno à autonomia com a Negra Li Produções e este álbum em particular representa a liberdade total de ser dona e proprietária da minha marca, da minha vida e da minha arte.” O maior desafio? “Assumir totalmente a autonomia criativa e empresarial. Eu, que já me senti manipulada e silenciada, precisei superar a insegurança e tomar as rédeas de cada etapa: das letras à produção, da escolha de parcerias à estratégia de lançamento. É um trabalho triplicado, mas a satisfação de ver o resultado que é 100% a minha verdade é imensurável”, garante.



Fake, Djonga e o regresso ao rap sem filtros
Fake é o single que mais expõe a alma. Uma faixa profundamente pessoal que aborda a crise de ansiedade e o esgotamento causados pela pressão do mundo virtual e das redes sociais. “Transformei essa experiência em arte ao usar o rap como um desabafo profundo sobre a necessidade de nos desvencilharmos desse mundo de mentira, de filtros e de vidas encenadas.” A mensagem é um convite à autenticidade. “Que as pessoas parem para respirar, que questionem essa ditadura do ‘estar bem’ e do ‘ter que ser perfeito’ nas redes. A ansiedade é real, a crise é real, e precisamos falar sobre isso.”
A releitura de Lembra do Menino? com Djonga celebra os 20 anos do primeiro álbum, Guerreiro Guerreira, e os 30 de carreira. “Era o momento ideal para revisitar essa canção, que é um clássico”, explica. “A música resgata a temática das origens, das dificuldades e da esperança da juventude preta na periferia. Vinte anos depois, minha visão não mudou na essência da luta, mas se fortaleceu na consciência. Hoje, com a liberdade e o palco que conquistei, sinto o peso e a responsabilidade de honrar essa história.” Djonga, que tinha 10 anos em 2004, entra como “o menino”. Helião estava indisponível, mas a escolha foi certeira.
Gloria Groove e Liniker completam o manifesto. “A escolha de Djonga, Gloria Groove e Liniker foi totalmente estratégica e visceral”, afirma. “Eu precisava de vozes muito relevantes para me ajudar a contar a história de O Silêncio Que Grita, vozes que representam força, diversidade e resistência na sociedade. Essas parcerias fortaleceram o manifesto porque cada um deles carrega uma mensagem poderosa de identidade, luta e empoderamento.”



Turné com banda, alma e mensagem
A turné O Silêncio Que Grita estreou a 26 de julho, em São Paulo, e está a ser “poderosa, intensa e transformadora.” A grande novidade? “Após muitos anos me apresentando com DJ, a maior mudança foi que trouxe uma banda completa de volta ao palco. Essa escolha visa uma sonoridade mais orgânica, flertando com o R&B e uma pitada de jazz.” O setlist está “totalmente focado no manifesto do álbum, trazendo todas as faixas de O Silêncio Que Grita e mesclando-as com alguns sucessos do passado, mas tudo costurado por um discurso coerente de empoderamento, ancestralidade e superação”. A conexão com o público tem sido “visceral”. “Sinto que as pessoas estão ali não só pela música, mas pela mensagem, e essa troca tem sido a minha maior recompensa.”
Do hate à força: O silêncio imposto que virou grito
“Ao longo da minha trajetória, minhas obras acompanharam minhas fases de vida”, reflete. “Tive o período de Tudo de Novo focado na alegria e na maternidade, o de Raízes buscando a ancestralidade. Este novo disco veio com essa urgência política e social porque é exatamente isso que a Negra Li de hoje quer e precisa falar.” O hate, o machismo, a censura. “Os momentos mais difíceis foram, certamente, as pressões que tentavam me moldar ou me silenciar”, recorda. “Transformei essa pressão em combustível. O silêncio que me foi imposto virou o grito da minha arte. Busquei ajuda profissional para lidar com o hate e entender que ele não era sobre mim, mas sobre o preconceito do outro.”
O futuro faz-se sem pausas. Além da turné, Negra Li estreou-se como apresentadora no Palco Quebrada (The Town, Multishow e Canal BIS) – “um sonho de infância” – e tem Clareou com Thiaguinho como tema de abertura de Três Graças, novela das 21h da Globo. “O plano imediato é focar na turné, levando essa energia e essa mensagem para o máximo de pessoas e cidades possível. Podem esperar por mais novidades audiovisuais e, claro, a continuidade da minha jornada na música, sempre em busca de projetos que honrem minha história e a dos silenciados.”
Negra Li transformou o silêncio em megafone. Hoje, cada verso é uma ponte para quem ainda vive na margem. Com 30 anos de luta no rap, ela usa a independência para denunciar o genocídio juvenil, o racismo estrutural e a ditadura das redes, provando que a resistência política não precisa de permissão para ecoar alto e mudar o jogo.
