Como uma marca brasileira de upcycling de velas de kitesurf cria histórias de propósito e sustentabilidade
O mercado da moda é um dos mais poluentes do mundo, responsável por cerca de 10% das emissões globais de carbono e pelo consumo massivo de recursos naturais, incluindo água, energia e matérias-primas como algodão e poliéster. Cada peça nova produzida requer insumos, processos químicos e transporte, contribuindo significativamente para a pegada ambiental do setor. Além disso, estima-se que mais de 92 milhões de toneladas de resíduos têxteis sejam descartados globalmente a cada ano.
Neste contexto, iniciativas de upcycling ganham relevância ao oferecer alternativas que reduzem o consumo de novos materiais, que reaproveitam peças já existentes e que incentivam uma mentalidade de consumo consciente. Nesse sentido, um exemplo notável é a KiteCoat, uma marca brasileira que transforma velas de kitesurf inutilizadas em casacos únicos, carregados de história e produzidos de forma totalmente artesanal.
Fundada pelo arquiteto e velejador Alexandre Rezende e pela publicitária Paula Lagrotta, a KiteCoat nasceu do incómodo causado pelo ciclo de vida curto das velas de kite — que, de forma otimista, levam pelo menos 300 anos para se decompor — e da vontade de criar moda que fosse sustentável, funcional e cheia de propósito.
“O nosso objetivo não é apenas criar roupas, mas sim dar uma nova vida a materiais que seriam descartados, e dessa forma gerar impacto social”, afirma Alexandre, em entrevista à GoB.


Do Upcycling à Moda Circular
Cada KiteCoat acompanha uma tag que conta a trajetória da vela — de onde veio, por onde velejou, o modelo e o ano de fabrico. O processo da KiteCoat envolve lavagem, seleção e disposição manual do nylon, seguido de confecção artesanal. As partes remanescentes das velas são reaproveitadas em coletes, mochilas ou outras peças, garantindo um aproveitamento total do material.
No entanto, Alexandre reforça que o upcycling vai além da moda. Um exemplo foi a consultoria que desenvolveu para uma empresa de gás e petróleo, referente aos equipamentos dos funcionários. Ao invés de ser a KiteCoat a produzir as roupas, o responsável sugeriu que a produção das mesmas fosse realizada pela ONG Mulheres do Sul Global, um negócio social de empoderamento económico de mulheres refugiadas inseridas em contextos de refúgio e vulnerabilidade social.
Outro pilar é o trabalho com fabricantes locais: “Não adianta eu ter um material sustentável para depois ser enviado para a Europa ou América do Norte. Temos, antes, contatos de fabricantes em diversos países para uma cadeia produtiva mais consciente.” Essa abordagem reduz deslocamentos, gera rendimento local e garante impacto positivo em todas as etapas.
Quando questionado sobre possíveis mudanças no comportamento do consumidor em relação ao consumo consciente, Alexandre observa que essa percepção ainda está em transformação. “Algumas pessoas ainda associam o upcycling a algo que deveria ser mais acessível, sem levar em conta o trabalho manual e o cuidado artesanal por trás de cada peça. Mas estamos a evoluir — as pessoas começam a entender que esse tipo de produção não é facilmente escalável e que o valor está precisamente na singularidade e no cuidado de cada peça.”
Projetos e Colaborações com Propósito


A KiteCoat destaca-se em várias iniciativas. Entre elas, uma das colaborações mais emblemáticas da marca é a expedição Voz dos Oceanos, que consciencializa sobre poluição plástica, documenta práticas sustentáveis, apoia a ciência e promove uma educação ambiental global. Feita com a vela do veleiro Kat, utilizado na terceira volta ao mundo da Família Schurmann, a edição limitada de 2022 leva o DNA da vela que circum-navegou o planeta, reforçando o propósito ambiental da marca.
Outra parceria significativa foi a criação do modelo Paulistano Vela Marga, desenvolvido com Lars Grael e a Futon Company. Cada poltrona da edição limitada – existindo apenas onze unidades – foi feita com velas do veleiro Marga (propriedade do medalhista olímpico Lars Grael), assinada por Grael e projetada pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha. A peça combina design, história e sustentabilidade, mostrando como o upcycling pode ser integrado no design de interiores.


Um projeto atual bem emblemático para Alexandre é a parceria com a ONG Mudando o Placar, idealizada por Layana de Souza, que atua com jovens da Rocinha através do desporto. Graças à mediação da KiteCoat, o artista e designer Alexander Iesu, criador do método “Ténis do Zero”, transformou bolas de basquete e uniformes obsoletos em ténis totalmente novos e sustentáveis. O destino deste modelo de ténis ainda é incerto, mas o responsável acredita que será leiloado com o valor revertido para a ONG, garantindo que materiais e histórias que seriam descartados continuem a ter valor. Um feito só possível devido à visão macro de Alexandre Iesu e a sua vontade de gerar impacto positivo em diversas áreas.
Reconhecimento e Visibilidade Internacional
A KiteCoat foi finalista no Prémio Eco Era 2018, na categoria Planeta – Pequenas Empresas, competindo com grandes nomes do setor. Alexandre lembra com orgulho:
“Concorríamos com grandes nomes na categoria, e lá estávamos nós, a KiteCoat. Foi um reconhecimento importante e simbólico, especialmente para uma marca tão jovem e independente.”
A marca também foi destaque na série francesa “Espèces d’ordures”, que percorre o mundo mostrando projetos de upcycling. Sobre isso, Alexandre comenta, feliz:
“Do mundo todo, de quatro projetos selecionados no Brasil, estávamos entre eles.”
Além disso, a KiteCoat participou no projeto Kite for the Ocean, chamado “Winds for Future”, que, em 2022, reuniu 884 kitesurfistas de mais de 30 países para bater o recorde mundial do Guinness de maior desfile de kitesurfistas do mundo. “Agora, conheces alguém que entrou para o Guinness Book”, brinca. Já em 2023, o projeto desafiou participantes a velejar 44 mil quilómetros, removendo 1 kg de lixo costeiro a cada quilómetro.
Todos estes projetos e reconhecimentos refletem como a marca combina moda, desporto e ativismo, inspirando consumidores e comunidades a repensar o consumo e o impacto ambiental.


Uma marca, um Movimento
Mais do que moda, a KiteCoat representa um manifesto de consumo consciente. É um convite para repensar o consumo. Para eles, cada colaboração e projeto é uma oportunidade de fortalecer redes de sustentabilidade e dar visibilidade a iniciativas inovadoras.
É motivador encontrar pessoas como Alexandre Rezende e Paula Lagrotta – visionários e comprometidos em transformar o que seria lixo num verdadeiro legado. Não percas a oportunidade de conhecer a marca e refletir sobre como é que as tuas escolhas podem gerar impacto positivo no meio ambiente e na sociedade.