A explosão destes fármacos “anti-fome” não é apenas uma questão de saúde, pois expõe desigualdades, pressões estéticas e até fantasias inconscientes ligadas ao corpo feminino
Segundo um estudo do USC Schaeffer Center, as prescrições de semaglutida, que compões as injeções, cresceram mais de 400% entre 2021 e 2023. Já a Morgan Stanley prevê que, até 2035, cerca de 24 milhões de norte-americanos utilizarão regularmente estes medicamentos. Isso significa quase 7% da população dos EUA.
Estas canetas injetáveis adelgaçantes são, simultaneamente, promessa médica e espelho cultural. Elas revelam que a magreza extrema continua a ser o ideal estético, reforçam desigualdades sociais e expõem a pressão sobre o corpo feminino.
No fundo, talvez a questão mais perturbadora não seja “quantos quilos vamos perder?”, mas sim: ao “apagar“ a fome, não estaremos também a apagar partes essenciais de quem somos?
Mas quem pode pagar esse preço? Em Portugal, o custo mensal deste tratamento atinge facilmente perto de 200 euros. Assim, a magreza obtida via caneta não é apenas estética – é também um marcador de classe.
Estudos já confirmam esta teoria: doentes com seguros privados têm muito mais acesso a prescriçõs de semaglutida do que utentes de sistemas públicos.
Em países onde milhões enfrentam insegurança alimentar, outra parte da população gasta centenas de euros para não sentir fome. Esta é a ironia mais brutal deste fenómeno: enquanto uns lutam para saciar a fome real, outros lutam para a eliminar simbolicamente.
Quando um medicamento promete “tirar a fome”, a questão não é apenas fisiológica. Ela toca no desejo. A caneta, neste contexto, torna-se símbolo de auto-apagamento.
A fome como metáfora: não é só apetite por comida, mas também por vida, afectos, relações.
Fantasia de apagamento: reduzir o corpo pode representar a vontade inconsciente de ser menos visível, menos exigida, menos vulnerável.
Defesa contra o excesso: emagrecer pode ser uma tentativa de controlar emoções, ansiedades e pressões sociais sentidas como “grandes demais”.
Redes sociais e a performance do corpo magro
A febre não é apenas estatística: hashtags no TikTok acumulam milhões de visualizações, memes como Ozempic face circulam e relatos de celebridades reforçam o fascínio colectivo por estas canetas “milagrosas”.
No TikTok e no Instagram, o emagrecimento deixou de ser uma experiência íntima para se tornar um conteúdo performativo.
O regresso da magreza extrema: do heroin chic ao Instagram
Nos anos 1990, o estilo heroin chic dominava passarelas e editoriais, marcado por modelos extremamente magras, de aparência frágil. A crítica foi tanta que chegou a ser alvo de restrições em alguns países.
A década de 2010 parecia ter trazido um alívio, com o movimento body positive a valorizar diversidade corporal. Porém, relatórios recentes mostram um retrocesso: em 2025, apenas 2% das modelos em desfiles internacionais tinham medidas médias.
Na verdade, o culto do corpo reduzido nunca desapareceu: apenas ganhou uma nova ferramenta farmacológica.
Uma história que se repete
A obsessão pelo emagrecimento rápido não é nova. Nos anos 1960, anfetaminas foram amplamente prescritas como supressores de apetite – até se descobrir o seu potencial aditivo. Depois, nos anos 1990 e 2000, proliferaram as chamadas “pílulas milagrosas”. Muitas foram depois proibidas devido a riscos graves para a saúde.
Riscos, desigualdades e o efeito rebote
Apesar do entusiasmo, especialistas alertam: faltam estudos sobre segurança em populações que não apresentam obesidade. Efeitos adversos relatados incluem náuseas, vómitos e, em casos raros, pancreatite. Além disso, há o efeito rebote: muitas pessoas recuperam rapidamente o peso após parar o tratamento.
Investigadores identificaram ainda relatos emergentes de irritabilidade e dormência, efeitos pouco descritos em ensaios clínicos.